O ranking brasileiro de patentes é liderado por universidades federais desde 2014. Segundo dados do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), mais de 76% dos registros de bens materiais ou de serviços vieram das instituições públicas de ensino superior.
Entretanto, para o professor e autor do livro
Fundamentos de Patentes para Estudantes, Marcelo Gomes Speziali, não existem muitos motivos para comemoração. "Por sugestão da primeira
lei de incentivo à inovação, as universidades federais têm acumulado registros desta natureza desde 2004, quando foi instituído o Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) como o órgão responsável por gerir a política de inovação e tecnologia das instituições. Apesar disso, precisamos ainda romper com as diversas barreiras que impedem a entrada dessas e de outras tecnologias no mercado. Conhecimento parado não vale nada, ele precisa circular", avalia.
Químico por formação, Marcelo acabou se aventurando nesta nova área, associada ao Direito, a partir de 2005. Ele explica que, para efeitos de proteção, considera-se propriedade intelectual (PI) todo e qualquer produto da criação intelectual humana. Como gênero, a PI pode se dividir em duas classificações: direitos autorais, utilizados para a proteção de obras artísticas, científicas e literárias; e propriedade industrial, quando nos referimos ao caráter utilitário das invenções, como as patentes, marcas e desenhos industriais. Para a primeira, acionamos o Direito Civil. Para a segunda, o Comercial.
"A área é interdisciplinar por natureza, do contrário não avançaríamos", comenta Marcelo, que, além de lecionar nos cursos de graduação em Química, Física, Biologia e Farmácia e na pós em Engenharia de Materiais (Redemat) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), foi nomeado, no último mês, o novo diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação da Fapemig, cargo que deve desempenhar até 2024. Para este "Em Discussão", conversamos sobre a suspensão de patentes para a produção de vacinas contra a Covid-19 e sobre algumas perspectivas para o futuro.
Dados do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), consolidados entre 2014 e 2019, revelam que 19 dos 25 maiores depositantes de patentes residentes no país são universidades públicas. O que podemos entender deste cenário?
Desde 2004, por sugestão da primeira lei de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica, houve, por parte de alguns poucos professores, um esforço isolado ao incentivo da cultura de proteção às tecnologias desenvolvidas em nossos laboratórios. Por isso, e apenas por isso, colhemos esses bons frutos hoje, com um número de patentes razoavelmente maior quando comparados aos das empresas privadas. Sobre isso, podemos levar em consideração duas coisas: mesmo sucateada, a universidade pública tem fôlego, mostra que existe capacidade de produção científica e tecnológica no país. No entanto, apenas 6% de toda a PI alcança as prateleiras do mercado. Estamos ainda em um nível de desenvolvimento tecnológico "imaturo", o que significa dizer que o risco de investimento para os executores, desenvolvedores e negociadores em diferentes organizações ainda é bastante alto.
Quem pode possibilitar esse amadurecimento? Como?
Os primeiros estágios do desenvolvimento tecnológico se dão na universidade, principal responsável por formar recursos humanos capacitados. Vencidos os anos da pós-graduação, os pesquisadores se deparam então com o que chamamos de "o vale da morte": raríssimos editais de fomento por parte das agências públicas e pouquíssimos por parte das agências e empresas privadas. Ainda que esse não seja um problema único ou tipicamente brasileiro, existem em alguns outros países instituições que tentam minimizar esse purgatório, de forma a possibilitar o uso das tecnologias desenvolvidas nacionalmente.
Alguns exemplos brasileiros seriam…
Se observarmos o contexto mineiro, existem alguns laboratórios que auxiliam diversos pesquisadores a atravessar esse estágio. Biotech Town e Biominas são dois exemplos, mas existem outros. Ambas atendem bionegócios em suas diferentes fases, desde a introdução ao mercado e qualificação da mão de obra até a expansão ou mesmo internacionalização das ações. Portanto, é preciso fortalecer as universidades, mas também os laboratórios de escalonamento e, principalmente, nossa política industrial. Se não completarmos toda essa cadeia, continuaremos contando números de depósitos de patentes, apenas.
Em maio deste ano, a Organização Mundial da Saúde propôs que as indústrias farmacêuticas suspendessem temporariamente as patentes dos imunizantes contra a Covid-19. A medida pode reverter a escassez de vacinas em países pobres e emergentes?
Essa é uma questão complexa! Ao suspender os direitos de uma patente, "impor uma licença compulsória", em juridiquês, nos livramos dos royalties e tornamos mais acessíveis as tecnologias, sim. Todavia, no caso específico da vacina contra a Covid-19, a suspensão não nos garantiria a sua produção, principalmente em larga escala. Fiocruz, Butantã, Funed e outros centros de pesquisas biológicas não têm a capacidade de absorver toda a tecnologia desenvolvida mundialmente. Não por expertise de seu pessoal, mas por falta de infraestrutura. Ou seja, ainda seremos dependentes da importação de insumos farmaceuticamente aceitáveis (IFA), produzidos em sua maior parte em países como Estados Unidos, Alemanha, China e Índia.
Como podemos entender essa nossa dependência do mercado externo?
Compare a vacina contra a Covid-19 ao telefone celular que você carrega em seu bolso. Um dispositivo móvel como esse não conta apenas com uma patente, mas com centenas: o touchscreen, a comunicação com o satélite, a conexão com o Wi-Fi, entre outras. Com a vacina acontece a mesma coisa: necessitamos do insumo, do veículo, do invólucro. Precisamos observar qual a marca registrada e toda uma série de tecnologias, também protegidas, que estão fora de nosso alcance operacional. Voltamos ao problema de nossa "imaturidade tecnológica". Continuaremos dependentes do comércio exterior até que sejam desenvolvidas as condições adequadas para transformar as tecnologias engavetadas nas universidades brasileiras em produtos disponíveis ao nosso mercado.
E qual a posição das instituições de tecnologia do país sobre o assunto? Você tem acompanhado as discussões?
O assunto é quente. Eu represento a Associação Fórum Nacional de Gestores de Inovação e Transferência de Tecnologia (Fortec) e estamos em contato constante com a Fiocruz. Eles não medem esforços para requintar a qualidade das vacinas produzidas no país, com suspensão de patentes ou não. As próprias universidades têm se mobilizado para auxiliar os institutos de pesquisa, mas é preciso mais. Não sou virologista, nem especialista em vacinas, porém, uma das poucas certezas que tenho é que essa doença veio para ficar e que a vacinação contra a Covid-19 deverá ser feita continuamente. Precisaremos de vacinas cada vez mais robustas e, tenha certeza, não discutiremos sobre a possibilidade de suspensão das patentes a cada novo ano.
Em 2007, o Brasil concedeu a licença compulsória do fármaco efavirenz, indicado para tratamento antiviral combinado contra o HIV-1. Você se lembra desse episódio? Poderíamos traçar paralelos entre uma situação e outra?
São processos semelhantes. A "pequena grande" diferença entre o que ocorreu naquela época e o que ocorre agora está na capacidade produtiva desses medicamentos. Tínhamos a estrutura necessária, eu quero dizer. E também no número de pessoas afetadas, bem menor. O efavirenz foi um caso de sucesso, digamos assim, da licença compulsória no país.
E foi também o último, correto?
Sim, pois as licenças são cedidas em condições excepcionais. No caso de pandemias ou endemias, encontramos justificativas plausíveis para as implicações que se seguem. Afinal de contas, estamos dizendo para centenas de pesquisadores que desenvolveram determinada tecnologia, para as empresas que investiram milhões de dólares em recursos dos mais diversos, que eles não vão receber os royalties sobre aquele trabalho, sobre aquela aplicação. São discussões que vencem barreiras jurídicas, técnicas, até mesmo econômicas. Então, felizmente esse foi nosso último caso. Felizmente, porque as situações são sempre bastante drásticas.
Novo diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação da Fapemig. Como avalia o feito?
A responsabilidade é imensa. Na ausência do atual presidente, quem assume a presidência de forma interina é o diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação — o mais alto cargo que um representante da Universidade já ocupou. E o desafio é igualmente grande. Espero contar com a colaboração dos colegas para que possamos transformar esses desafios em resultados proveitosos para a comunidade mineira como um todo.
Você se afasta das suas atribuições na UFOP ao assumir o cargo?
Eu tenho que me afastar, sim. A União, contratante, faz a cessão do docente para o Estado. Durante esse período, me afasto das tarefas clássicas da docência e estamos estudando maneiras de repor minhas obrigações com a graduação. Com meus orientandos em nível de pós, já não temos problemas: continuarão todos sob minha supervisão.
Existe algum receio, considerando o estado das coisas e a oposição ferrenha do governo federal contra a ciência?
Olha, o obscurantismo é generalizado! A confiabilidade na ciência, na Justiça, está se reduzindo com o passar do tempo. No entanto, esta não é nossa primeira crise como humanidade. Nikolai Kondratiev, em Long Wave Cycle, nos diz que passados os tempos de turbulência, somos capazes de superar alguns paradigmas. Hoje acredito que utilizamos as tecnologias de informação de maneira muito mais adequada, mais sofisticada, eu diria. Outra área fortalecida será a da biotecnologia, justamente por conta desse novo modus operandi em torno da produção de novas vacinas. Agora, precisamos deixar algo muito bem estabelecido: inovação e tecnologia se faz com ciência de base, que não traz resultados imediatos para ninguém, em nenhum lugar do mundo, em nenhuma época de que se tenha registro. Sem desenvolvimento científico não existe desenvolvimento tecnológico. O grande desafio daqui para frente será fazer com que os dois ocorram de maneira paralela. O científico faz avançar as ferramentas do saber. O tecnológico traz bem-estar e segurança. Para o científico, aporte financeiro. Para o tecnológico, incentivo ao setor industrial. Devemos melhorar ainda o diálogo entre as esferas pública e privada, fazendo com que as duas conversem de maneira mais assertiva. Como gestor, não mais como professor, resumo a questão: precisamos de profissionais que nos auxiliem a estabelecer os termos desta conversa.
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade. Confira todas entrevistas já publicadas.