Criado por Jaqueline Ferreira em seg, 30/10/2023 - 16:35 | Editado por Rondon Marques há 1 ano.
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O "Em Discussão" desta semana aborda esse tema, que tem ganhado espaço nas discussões sobre tecnologia e sua relação com o governo e a sociedade. Para falar do assunto, o convidado é o professor do Departamento de Gestão Pública (Degep) da UFOP Wellington Tavares, doutor em Administração pela UFMG, que desenvolve pesquisas com foco em governo, sociedade e usos de redes sociais virtuais, gestão pública e internet, movimentos sociais, democracia digital e democracia participativa.
Professor, como podemos diferenciar as formas tradicionais de democracia e a ciberdemocracia?
Podemos diferenciar a democracia tradicional da democracia digital, ou então, como muitos têm chamado, da democracia 2.0 ou ciberdemocracia, olhando simplesmente para a questão da incorporação da tecnologia que temos visto nos últimos tempos crescer nos mais diversos processos e práticas do setor público. A democracia em si fala de um regime ou de um governo do povo e para o povo, no qual todas as pessoas têm assegurada a participação política nas decisões públicas e também na formação, elaboração e aprovação de leis, políticas e tudo aquilo que interessa de alguma forma à sociedade. Quando pensamos na democracia tradicional, a gente pensa quase que necessariamente na participação das pessoas no processo político. Mas a democracia vai além disso e pressupõe o acesso de todas as pessoas, de forma igualitária, às políticas e ações do Estado, bem como a igualdade no tratamento perante as leis.
O regime democrático, então, tem no seu âmago esse intuito de considerar que todo cidadão e toda cidadã tenham os mesmos direitos assegurados no campo social, bem como os direitos relacionados à participação política. Numa democracia representativa, como esta em que vivemos, por exemplo, as pessoas podem participar como representantes de outras ao se elegerem para uma série de cargos e níveis de governo ou então elegendo seus representantes e sendo representados por estes. Então, quando falamos de democracia digital, nós estamos falando de uma nova roupagem, uma nova abordagem da democracia, a partir da utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação, as TICs, e do espaço criado a partir da internet, que chamamos de ciberespaço. Há, nesse sentido, uma expansão da esfera pública a partir das tecnologias, com a oferta de novos espaços para diversos tipos de interação entre aqueles que representam o governo, a sociedade e demais organizações públicas e privadas.
Quais são os principais desafios para a implementação da democracia digital? As ações necessárias são diferentes para os meios público e privado?
Na medida em que avançam as tecnologias e suas aplicações, surgem novos desafios a se enfrentar. Vários países que estão um pouco mais adiantados na questão da incorporação das ferramentas e iniciativas da democracia digital, obviamente, estão em momentos diferentes do Brasil. No nosso caso, um dos principais desafios é que temos uma dificuldade enorme de incluir todas as pessoas no contexto digital, gerando uma grande exclusão digital na sociedade. Temos um grande obstáculo em termos de infraestrutura (redes, satélites etc.), de acesso à internet, a smartphones e computadores, e em relação aos demais instrumentos e políticas necessários para uma maior utilização da internet. Além disso, muitas pessoas que têm acesso inicial à internet ainda não possuem orientação para esse uso, gerando um contexto de analfabetismo funcional em relação ao digital. Outro grande desafio é criar uma cultura de participação das pessoas na democracia. Independentemente da questão digital, temos, por várias gerações e pela configuração da divisão de poder no Brasil, uma grande parcela da população que se mostra desinteressada e ausente das questões políticas, independentemente do desenvolvimento de tecnologia. Temos um desafio muito grande que é o de mudar a concepção das pessoas para uma participação mais efetiva nessa cena pública e política, o que requer uma mudança cultural e comportamental de longo prazo.
No meio privado, as grandes empresas desenvolvedoras de tecnologia que operam com foco na informação e comunicação fazem captação de dados da população e obtêm grandes volumes de informações de diversos tipos de seus usuários. Essas empresas têm grandes orçamentos para o constante desenvolvimento de tecnologias, técnicas e ferramentas, o que colabora para o enriquecimento constante da captação e armazenamento de dados e, como consequência, o enriquecimento financeiro a partir da comercialização desses dados. Então, a gente vê claramente que as empresas que lidam com essa questão investem pesadamente na implantação de tecnologias que consigam, de certa forma, acompanhar a vida social e os perfis de consumo da sociedade, por exemplo, para que possam se beneficiar e lucrar ainda mais nesse contexto. Já o setor público se apresenta mais atrasado no desenvolvimento de tecnologias informacionais e comunicacionais, seja para o próprio funcionamento de seus processos internos ou para suportar as relações que estabelece com empresas e sociedade. Tal descompasso em relação às empresas privadas é causado em grande parte pelo baixo ou inexistente investimento na geração de tecnologias próprias, bem como pela falta de estratégia e visão de longo prazo que afeta muitos gestores públicos. Dessa forma, para acompanhar a dinâmica do desenvolvimento digital, [o governo] acaba por, na maioria das vezes, contratar e pagar para empresas de tecnologia desenvolverem e gerenciarem seus sistemas e informações, entregando a elas dados importantes de suas operações e das pessoas envolvidas (servidores, cidadãos etc.). Ou seja, um grande desafio para o setor público é repensar e mudar a forma como trata estrategicamente o desenvolvimento e aplicação de tecnologias informacionais e comunicacionais, bem como seus investimentos nesse contexto. Além disso, deve zelar mais pela segurança para com os dados dos cidadãos, servidores, gestores, empresas e demais atores que se relacionam com as organizações públicas, já que esse é um ativo de grande importância e valor atualmente.
Como as tendências em Inteligência Artificial podem impactar na evolução da democracia 2.0?
Eu, especialmente, sou bem otimista ao analisar o desenvolvimento da democracia a partir dessas ferramentas de informação e comunicação e tenho visto que a Inteligência Artificial (IA) pode impactar esse processo tanto positivamente como negativamente. Falando positivamente desses impactos, penso que as tecnologias desenvolvidas atualmente, especialmente as de IA, têm permitido que alguns governos busquem formas de aproximar os cidadãos de seus processos decisórios e conheçam os perfis, demandas e necessidades dos cidadãos. Por exemplo, é possível utilizar a IA para cruzar dados de vários tipos de órgãos públicos para o desenvolvimento de políticas públicas que alcancem as diferentes necessidades dos cidadãos. O cruzamento de dados de diferentes bases permite que você conheça melhor a população e as diferentes necessidades e desigualdades de regiões e grupos sociais. Assim, a IA pode permitir um avanço nas políticas públicas por meio do desenvolvimento de ações e pela oferta de serviços por parte do governo para atender melhor a sociedade, democratizando o acesso a essas políticas públicas em diversas áreas (educação, saúde, emprego etc.).
De que maneira essas tecnologias podem aumentar a transparência e a confiabilidade dos processos democráticos?
Em relação ao aumento de transparência, um exemplo que pode ser facilmente encontrado é o uso da IA para gerar informações que possibilitem investigar a sonegação de impostos por parte de empresas e cidadãos, o que possibilita controlar melhor a arrecadação para os cofres públicos e seu consequente impacto na oferta de serviços públicos, geração de renda e desenvolvimento econômico do país. A IA tem colaborado positivamente para o desenvolvimento desse maior controle por parte do governo e, do outro lado, por parte da sociedade em relação às ações do governo, o que possibilita o desenvolvimento de um contexto de maior transparência pública entre atores sociais, do governo e de organizações privadas.
Já a questão de confiabilidade é um pouco mais complicada, porque estamos falando de desenvolvedores que têm uma visão de tecnologia e mercado muito mais aprimorada do que nós, que somos meros usuários. Então, é interessante que o setor público busque reforçar constantemente a proteção de dados públicos, como, por exemplo, por meio da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) que já temos no Brasil, a qual visa assegurar informações da vida privada dos usuários e das organizações envolvidas, resguardando dados confidenciais. Mas veja só, o próprio governo faz exigências e confia em empresas que desenvolvem e gerenciam seus sistemas e informações, mas é difícil ou quase impossível entender os interesses dessas empresas e os usos que fazem dos dados e informações. Não sabemos até que ponto existe confiabilidade no trato desses dados e no cumprimento de cláusulas contratuais que visam conceder tal proteção a usuários e governos. Então, há que se pensar na confiabilidade quando se criam parcerias e se entregam dados sigilosos, por exemplo, a empresas privadas. É necessário refletir sobre até que ponto é confiável entregar esses dados para empresas privadas ou que tipos de informações entregar. Isso, de alguma forma, afeta a democracia! Onde é que esses dados que estão sendo coletados estão sendo utilizados? Eles podem parar nas mãos de quem? Com quais interesses?
Quais são as preocupações éticas e de segurança em relação à democracia digital? Como podemos diminuir os riscos de manipulação e desinformação?
As preocupações do setor público devem estar principalmente nas parcerias com empresas que lidam com os dados públicos e da sociedade. É necessário saber da capacidade dessas empresas de operar e desenvolver sistemas de informação e comunicação de forma segura e ética, já que nesse processo se entregam diversos dados advindos dos processos internos — ou seja, dos sistemas que integram diferentes setores e profissionais nos órgãos de governo ou entre órgãos de distintos níveis, como, por exemplo, grandes sistemas que são utilizados hoje para gestão da saúde e da educação e que ligam o governo federal aos governos estaduais e municipais. Hoje a LGPD tenta resolver algumas questões relacionadas à ética e à segurança dos dados das pessoas. Por exemplo, no âmago dessas organizações privadas que ofertam serviços de informação e comunicação para o governo, é certo que há outros interesses de uso dos dados manipulados, no sentido de controlar ou entender os perfis de grupos da sociedade ou de consumo e comportamento. Então, uma preocupação ética e de segurança deve ser centrada em entender como esses dados estão sendo tratados e manipulados. É necessário saber se há respeito à privacidade das pessoas envolvidas e às informações importantes e confidenciais dos governos.
Já no caso de nós, cidadãos, temos que ter uma preocupação em verificar as fontes de informações e sua veracidade, especialmente antes de compartilhar informações nas nossas redes, atestando que não se tratam de notícias falsas, as já conhecidas "fake news", tão utilizadas para manipular as pessoas. Estamos entrando em uma nova era das informações com o desenvolvimento da IA. Como exemplo, temos o avanço no desenvolvimento das "deep fakes", que tornam mentiras "novas verdades", de forma cada vez mais real. Isso é assustador e trará consequências drásticas para a sociedade, em especial para pessoas públicas. É certo que as próximas eleições poderão ser muito afetadas por esse tipo de conteúdo falso, o que impactará no posicionamento assumido pelos eleitores e em seus votos, de acordo com a intensidade com que serão manipulados. Assim, será necessário que os eleitores, candidatos, partidos e mídia busquem formas de combater esse tipo de conteúdo fraudulento, especialmente checando informações e desmentindo as falsas. Essas são algumas formas, por exemplo, que podemos utilizar para zelar pela nossa democracia. Tempos difíceis virão!
Quais são as principais ferramentas e tecnologias que podem auxiliar na implantação da democracia digital?
Não temos uma resposta única para essa questão, mas uma resposta mais genérica, tendo em vista que esse contexto está em constante desenvolvimento e transformação e depende dos direcionamentos que a sociedade e cada governo assumem. Há diferenças significativas entre as gestões de um estado para outro e em como esses governos querem lidar com as TICs. Em um país como o Brasil, que tem mais de 5.500 municípios, há uma diferença gritante em relação ao posicionamento que os governantes assumem e no orçamento que é disponibilizado para lidar com a tecnologia, que é decisório para a incorporação desta nos processos democráticos. Enquanto o governo federal busca ferramentas e sistemas que incorporem e tornem mais eficiente sua comunicação com estados e municípios, por exemplo, há centenas de municípios que não têm sequer um portal de serviços ou de transparência disponibilizado.
Por exemplo, desde 2011, com a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), há a obrigatoriedade de que todos os municípios mantenham portais de transparência, mas são isentos dessa regra os municípios com menos de 10 mil habitantes. Com isso, espera-se que os municípios obrigados pela lei disponibilizem essas informações de interesse da população para que haja maior controle das ações desses representantes. Contudo, quando buscamos esses portais de transparência, nem sempre os encontramos, ou os encontramos desatualizados. Há níveis distintos de complexidade das configurações dessas tecnologias, de acordo com o posicionamento que os governantes têm assumido, que muitas vezes decorre daquilo que é obrigatório por lei. Portanto, para avançar na implantação da democracia digital, são necessários recursos, tecnologia e boa vontade dos governantes, na busca por desenvolver ideias e contextos de participação da população ou mesmo por aplicar em suas localidades exemplos bem-sucedidos já adotados por outros. Além disso, é necessário controle por parte dos cidadãos, que devem acompanhar e exigir o cumprimento de leis e uma postura transparente e aberta à participação por parte dos governantes.
Como garantir a inclusão digital e a participação cidadã online na era da democracia digital, considerando que nem todos têm acesso à tecnologia e à internet?
É outra questão complexa para se responder, porque há nuances relacionadas à tecnologia, estrutura, aos interesses políticos e posturas dos governantes, a uma mudança cultural visando à democracia participativa, entre outros aspectos. Em termos de política e estrutura tecnológica, o Brasil experimenta mudanças contínuas desde a década de 1990, quando se começou a desenvolver o chamado "governo eletrônico", no governo Fernando Henrique. Houve um esforço enorme nesse sentido, a exemplo do que já vinha sendo feito em vários países mundo afora. Foi um passo inicial dado no sentido de trazer esse desenvolvimento de serviços públicos para a população, obviamente, para reduzir os custos do governo e melhorar a eficiência. Nesse contexto, o cidadão era mais entendido como um cliente do Estado.
Em 2002, já no início do governo Lula, as políticas e ações mostraram uma diferença de posicionamento quanto a essa incorporação da tecnologia. Entre as principais prioridades estava uma melhoria na infraestrutura, com a utilização de mais satélites para melhor disponibilização de internet para as pessoas, melhorando o alcance e o acesso. De lá para cá, passaram-se 20 anos e a gente ainda não tem toda a população incluída digitalmente — em meio a outras tantas exclusões e desigualdades. Num país em que milhões de pessoas não têm ao menos uma refeição digna por dia, ainda é difícil considerar a inclusão digital para todos. Mas nesse período tivemos um aumento de iniciativas por parte do governo federal, dos governos estaduais e municipais e da iniciativa privada, com diferentes empresas de telefonia oferecendo possibilidades variadas de acesso à internet e a equipamentos, smartphones etc.
Os smartphones, como já percebido na realidade e confirmado por meio de pesquisas, ultrapassaram em número os computadores e têm sido importantes peças para a inclusão digital, já que vêm sendo muito utilizados pela população para ter acesso à internet de forma mais prática e mais barata. Há ainda uma série de organizações públicas e privadas que oferecem wi-fi gratuito em algumas localidades, e assim temos acompanhado alguns avanços, que têm possibilitado uma maior inclusão digital. Portanto, em relação à inclusão, é necessário o constante desenvolvimento de recursos e a redução de custos para aquisição de equipamentos e internet para as pessoas, por parte de organizações públicas e privadas.
Em relação ao aumento da participação democrática na internet, o maior desafio está em transformar o comportamento e a cultura de participação das pessoas na cena pública. Então, penso que não só os governos, mas também a sociedade civil tem a responsabilidade de discutir e amadurecer as questões relacionadas à democracia participativa e, em consequência, de utilizar as ferramentas e espaços digitais para desenvolver a democracia digital. A iniciativa privada, especialmente as empresas de tecnologia, também têm a responsabilidade de ampliar o debate sobre essa questão e possibilitar que ferramentas digitais sejam usadas em favor da democracia, cuidando para aumentar a participação das pessoas e enfrentando as formas de manipulação de certos atores políticos e o desinteresse e apatia em relação à política.
Por fim, é necessário repensar esse conceito de inclusão digital, não só para o acesso das pessoas às tecnologias, mas para que essa inclusão seja uma inclusão verdadeira. Que não seja um grande teatro, orquestrado e dirigido por alguns agentes públicos para criar uma suposição de que existe uma situação de democracia, enquanto não existe uma plena democracia. É preciso que as pessoas realmente se façam ser ouvidas e que seus desejos sejam atendidos pela classe política e pelos agentes públicos.