Ir para o conteúdo

A água como um bem público

Twitter icon
Facebook icon
Google icon
 
Um país rico em recursos naturais, com solo fértil e vários biomas em suas fronteiras. A abundância do Brasil perpassa também pelo grande canal hídrico que percorre e rega as terras em sua extensão geográfica e oferece o bem mais precioso e indispensável para a vida humana: a água. Ela é essencial para inúmeras produções e atividades que realizamos. Sem a água, o acesso a computadores, vestuário, transporte e alimentação, por exemplo, não seria possível. 
 
Apesar da abundância em território nacional, a distribuição não é amplamente igualitária, com déficit e carência de água de qualidade para determinadas áreas e uso mais intenso pelas atividades industriais. A falta de políticas públicas voltadas para o saneamento e reaproveitamento da água contribuem para um consumo desenfreado e irresponsável desse bem público. 
 
Na semana da celebração do Dia Mundial da Água, o assunto não poderia ser diferente. Neste "Em Discussão", o debate é o uso consciente da água e a necessidade de saneamento básico. 
 
Para abordar o tema e explicar questões pertinentes sobre saneamento, o convidado desta semana é o professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Sérgio F. Aquino, doutor em Engenharia Química. Ele aborda também as questões como a privatização da água. 
 
Professor Sérgio, o Brasil é um país rico em recursos hídricos, entretanto a distribuição de água acontece de maneira desigual para determinadas áreas. O que pode ser feito para melhorar a distribuição? A transposição do rio São Francisco pode ser considerada um exemplo?
 
De fato, o Brasil é um país bem aquinhoado com recursos hídricos. Estima-se que nossa disponibilidade hídrica média seja superior a 30 milhões de litros por habitante por ano ou cerca de 82 mil litros de água por dia para cada brasileiro. Contudo essa situação que parece confortável é as vezes crítica, devido à distribuição desigual dos mananciais de água e à poluição dos corpos d'água mais facilmente acessíveis (ex. rios e lagos). Minas Gerais tem disponibilidade hídrica superior a 10.000 metros cúbicos por habitante por ano e pode ser considerada "muito rica" nesse recurso. Por outro lado, estados como Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte têm disponibilidade hídrica inferior a 2.500 metros cúbicos por habitante por ano, caracterizando a situação como pobre ou as vezes crítica. Nesse contexto, a transposição de água de rios caudalosos, como o Rio São Francisco, faz parte da estratégia de fomentar o desenvolvimento regional de áreas com escassez hídrica. Contudo, é preciso destacar que outras opções mais baratas e de amplo alcance também devem ser utilizadas para contornar a escassez hídrica. Uma dessas opções é a coleta de águas de chuva por meio da construção de cisternas em residências do semiárido, tal qual preconizado no Programa Cisternas do governo federal, criado em 2003. 
 
Entre os maiores consumidores de água no país está a agropecuária, especialmente a produção de carne para consumo humano, já que cada quilo de carne consome 15,5 mil litros de água. A adoção de novos hábitos e estilos de vida são formas de evitar o uso desigual da água?
 
A vida moderna impõe grandes pressões ao meio ambiente. As pegadas hídrica (relacionada ao consumo de água) e de carbono (relacionada à emissão de gases de efeito estufa) dos bens e facilidades do mundo atual e, consequentemente, dos países desenvolvidos que têm poder aquisitivo para deles usufruir, são muito elevadas. O exemplo da carne, em país exportador de proteína animal como o Brasil, é emblemático. Na mesma linha, estima-se que para produzir uma resma de papel A4 (pacote de 500 folhas) sejam consumidos 5 mil litros de água, e que para produzir um único aparelho de TV sejam gastos 30 mil litros de água (ver www.waterfootprint.org). Nesse contexto, a mudança de hábitos e costumes, tais como diversificar as opções proteicas no cardápio do dia a dia, evitar a impressão em papel e diminuir o número de aparelhos de TV em casa, certamente contribuem para reduzir a pegada hídrica.
 
Políticas governamentais poderiam contribuir para evitar o mal uso de água no país, como medidas de reaproveitamento da água e maior investimento no saneamento básico?
 
Sem sombra de dúvidas, investir em saneamento básico e induzir o reaproveitamento de água, seja nas residências ou, principalmente, nas atividades industriais, contribuem positivamente para a redução da escassez relativa de água, ou seja, para o aumento da oferta de água de boa qualidade. Por um lado, o tratamento dos esgotos sanitário e industrial contribui para melhorar a qualidade dos nossos rios e lagos, diminuindo o impacto ambiental e também o risco à saúde humana decorrentes de compostos tóxicos (ex. organoclorados, compostos perfluorados, metais e metalóides) presentes em algumas águas residuárias. Percebe-se que a maioria dos nossos rios e lagos estão contaminados devido, principalmente, ao lançamento de esgoto sanitário (gerado nas nossas casas e nas atividades de comércio/serviço) in natura ou parcialmente tratado — estima-se que há coleta de cerca de 54% do esgoto gerado no Brasil e que apenas 49% do esgoto seja tratado (www.tratabrasil.org.br). Estima-se ainda que cada um real investido em saneamento, resultaria na economia de 9 reais  no setor saúde (ver "Cada real gasto em saneamento economiza nove em saúde", disse ministro da Saúde - Todas as Notícias - Fundação Nacional de Saúde (funasa.gov.br) ). O saneamento básico, portanto, deveria ser nossa prioridade número um! Contudo, ampliar a cobertura de coleta e tratamento de esgotos sanitários depende da indução e de incentivos dos governos federal e estaduais, tendo em vista que as prefeituras normalmente não têm recursos para fazer o investimento relativamente vultuoso que a coleta e tratamento de esgotos sanitários requer. Por outro lado, o reaproveitamento dos esgotos (sanitário e industrial) tratados para promover diversos tipos de reuso (ex. fertirrigação, uso industrial como água de caldeira e refrigeração) diminui a vazão de água (quantidade em volume por unidade de tempo, ex. litros por segundo) captada no ambiente, diminuindo assim a pressão sobre os recursos hídricos. A prática de reuso de água também é incipiente no nosso país, demandando incentivo fiscais (ex. ICMS e IPTU ecológicos) para que residências, atividades comerciais e industriais a implementem.
 
Quais ações o cidadão comum pode fazer no cotidiano para o bom uso da água?
 
Muitas ações simples, que requerem apenas mudança de hábito e costumes, podem ser usadas para reduzir o consumo de água nas residências. Regar as plantas no início ou final do dia (quando a temperatura e a evaporação da água são menores); fechar a torneira quando for ensaboar a louça, escovar os dentes ou se ensaboar no banho; lavar o carro usando um balde ao invés de mangueira; usar vassoura ao invés de jato de água para limpar as calçadas — são algumas ações que poderiam ser adotadas sem custo algum. Outras ações que requerem algum investimento são: captar e usar a água da chuva; separar o esgoto gerado nas casas direcionando os dejetos da bacia sanitária para a fossa ou rede de esgoto e reaproveitando as águas cinzas (dejetos do chuveiro, lavanderia, lavatórios) para dar descarga no vaso sanitário, para irrigação de jardins, pomares, áreas verdes ou limpeza de pátios.
 
A política de implantação de um serviço de tratamento de água em Ouro Preto vem sendo muito criticada. Diversas manifestações de moradores já foram feitas no município sob alegação que o serviço vai onerar as contas dos consumidores. O que de concreto já temos sobre esse serviço em Ouro Preto?
 
A privatização de serviços de saneamento sempre deve ser considerada com cautela. A água deve ser vista como um bem cultural/social e como um direito humano, uma vez que é indispensável ao bem-estar e à saúde do homem. Em outras palavras, a água não deve ser vista como uma "commodity" e usada como um bem econômico.  Isso não significa que devemos ter acesso à água em quantidade e qualidade adequadas sem pagar nada por isso. Um dos instrumentos da gestão de recursos hídricos é justamente a política de cobrança, que contribui para coibir desperdícios e garantir recursos para investimento para a captação, tratamento e distribuição de água com a qualidade adequada ao seu uso. Não tenho elementos para analisar de forma específica a concessão do serviço de saneamento feita em Ouro Preto. 
 
A implantação desse serviço pode contribuir com o aumento da qualidade da água e diminuição do desperdício no município?
 
A instituição da cobrança, seja pela autarquia municipal (ex. Saae), pela companhia privada (ex. Saneouro) ou de economia mista (ex. Copasa), contribui para combater o desperdício e prover fonte de recursos para se investir no tratamento adequado da água. Com a instituição da cobrança, seja de forma direta pela concessionária privada/mista ou indireta pela cobrança de impostos (ex. tarifa básica) pelo município, permite que o cidadão cobre do poder público o fornecimento de água de qualidade e de acordo com o estabelecido na Portaria do Ministério da Saúde n. 888/2021. 
 
Tendo em vista a presença de arsênio na água de Ouro Preto, um metal que a longo prazo é cancerígeno para o ser humano, podemos esperar que a água do município terá mais qualidade para consumo no futuro?
 
O metalóide arsênio é de fato carcinogênico e o valor de referência estabelecido pela Organização Mundial da Saúde para sua presença em água de consumo humano é de apenas 10 microgramas por litro. Em outras palavras, seria permitido no máximo 1 grama de arsênio em 100 mil litros de água distribuída. Ao que parece, o arsênio não está presente em todo e qualquer manancial usado para abastecer Ouro Preto; é restrito a bicas cuja água que ali aflora percola antigas minas de ouro ou áreas em que há exposição da arsenopirita com consequente oxidação e mobilização do arsênio. De qualquer forma, é fundamental que os responsáveis pelo abastecimento de água em Ouro Preto, sejam eles entes privados ou o poder público, cumpram o disposto na aludida Portaria MS 888/2021, que requer o monitoramento periódico de águas distribuídas à população para verificar sua qualidade dos pontos de vista químico e microbiológico.
 
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade. Confira todas as entrevistas publicadas.

Veja também

14 Dezembro 2023

destaque_2.jpg Em 2015, entrou em vigor a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência,...

Leia mais

6 Dezembro 2023

destaque_.jpg A Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep) é uma iniciativa nacional dirigida às escolas públicas e privadas...

Leia mais

22 Novembro 2023

destaque_1.jpg Toda universidade, seja ela pública ou privada, necessita de instituições parceiras e de apoio para fomentar a expansão da...

Leia mais

30 Outubro 2023

destaque_.jpg NPG A internet, os celulares e os computadores têm se tornado cada vez mais presentes nas interações sociais e,...

Leia mais