A ideia defendida por Zygmunt Bauman de que as relações sociais são baseadas no consumo, ou seja, de que somos uma sociedade de consumo, ganha força com a necessidade de ostentação nas redes sociais e de possuir bens em comum (como smartphones, roupas de uma determinada marca etc.) para se encaixar em um grupo.
Desde o surgimento de e-commerces aos atuais bancos digitais, que facilitam o processo de aquisição de bens e produtos e estimulam o consumismo por meio de propagandas direcionadas em redes sociais, acabamos imersos em um mundo digital que promete acesso a qualquer item, de qualquer lugar, pelo valor certo, por um frete barato e com diversas formas de pagamento. Diante de tantas possibilidades e estímulos para os consumidores, o brasileiro acaba se deparando com problemas de longo prazo, como o endividamento e o transtorno compulsivo de compras causado por ansiedade.
Para tratar desse tema, o "Em Discussão" desta semana dialoga com o professor do curso de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e coordenador do
Núcleo de Direito do Consumidor da UFOP, Felipe Comarela Milanez, doutor em Direito Civil e mestre em Direito Privado.
Professor, podemos fazer a associação da ascensão do consumismo com algum momento histórico? A disseminação do conceito de consumismo pode estar relacionada a outras vertentes da organização social?
O consumismo evolui de acordo com a evolução da própria sociedade, do acesso da sociedade à aquisição de novos produtos. Ele também vem em uma ascendente, principalmente nos últimos 50 a 60 anos, enquanto estratégia de basear a economia capitalista a partir do consumo. A necessidade de atos de consumo está cada vez mais presente e em grande quantidade. Hoje, o consumismo está presente em razão, dentre outros, da necessidade de participação de um grupo, de aceitação. A compra de bens supérfluos está ligada também, por exemplo, a aspectos de ansiedade. Muita gente, diante da ansiedade, pratica um ato de consumo. Então o consumismo se tornou um problema psicológico, em que a pessoa não consegue controlar o seu comportamento impulsivo relacionado às compras. É importante diferenciar comprar muito de consumismo. Se formos fazer um recorte, pensando no aumento da nossa interação com o ato de consumo, neste ponto, sim, somos muito consumistas. Somos consumistas porque, hoje, fazer parte de algum grupo representa compartilhar com esse grupo os objetos e bens de consumo. Isso faz com que a pessoa se sinta parte do grupo social. E isso tudo contribui para o aumento do consumismo na nossa sociedade.
O consumismo pode ser associado à conduta de grupos sociais específicos? Quais os principais impactos você verifica nesse tipo de condicionamento?
Não vejo o consumismo ligado a um grupo social específico. O consumismo acompanha o consumidor, e o consumidor independe do extrato social. Pode ser o consumidor de baixa renda ou de artigos de luxo, que o consumismo pode estar presente. O consumo do ter apenas por ter, sem necessidade, para exibição, é fator que acaba nos levando a uma relação tendenciosa com o ato de consumo. De não enxergá-lo como algo para satisfazer uma necessidade real, mas como algo além disso, vinculado a desejos, à autoafirmação. Acho que não está ligado à necessidade de um grupo ou de uma classe específica, e sim da necessidade que o trabalho de marketing cria em nós.
Você acredita que a internet esteja contribuindo para o fortalecimento do consumismo? Como a ascensão dos e-commerces modificou as relações de consumo?
Sim, a internet contribui muito para o consumismo. Ela torna muito fácil comprar. Se antes existiam alguns filtros, barreiras que dificultavam a compra, agora já não tem mais. Por exemplo, o cartão de crédito. Sem ele precisávamos ter todo o dinheiro, o que nos fazia ter todo um esforço para juntar aquela quantia e nos fazia pensar na necessidade de realizar aquele esforço. Com o cartão de crédito, eu não preciso juntar o dinheiro. Então, quanto mais fácil é praticar um ato de consumo, mais fácil é nos deixarmos levar pelo consumismo, que é um ato vazio de necessidades. A internet facilita muito nisso, principalmente a partir da publicidade e de como somos persuadidos a consumir.
Como você avalia a legislação para garantir o direito dos consumidores que compram on-line? Considera que ainda são necessários avanços nessa legislação e na que regulamenta as relações comerciais presenciais?
Nós temos um código de defesa do consumidor que, mesmo tendo sido escrito em 1990, é bastante atual. Porque estabelece muitas disposições que se aplicam ao comércio eletrônico. Aliás, não é o lugar onde o ato de consumo é feito que define a aplicação da legislação da defesa do consumidor, é a presença de um consumidor no ato de consumo, ou até mesmo antes de consumir. É preciso alguns avanços, principalmente em relação à proteção de dados do consumidor. Nós temos a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), mas ela é pouco efetiva por falta fiscalização e controle em relação aos abusos praticados por fornecedores. É muito comum sermos abordados por empresas que têm acesso aos nossos rendimentos, acesso ao nosso telefone, ao nosso e-mail, mas não sabermos como tiveram esse acesso. Em muitos casos é por meio de compartilhamentos ilegais de dados ou por vazamento. Então nós temos boas leis, mas falta fiscalização e controle.
Como consequência do aumento do uso da internet e de redes sociais, há uma grande quantidade de propagandas às quais somos expostos diariamente. Como isso afeta os consumidores?
Hoje em dia recebemos publicidades personalizadas. O que eu recebo na minha rede social é diferente do que outras pessoas recebem por ser baseado no meu histórico de busca e de acessos a sites, por ter um compartilhamento de dados. Isso otimiza o impacto persuasivo da publicidade por aproveitar a exploração de uma necessidade real que eu tenho. Tem uma afetação significativa? Sim, porque o consumidor acaba sendo persuadido de maneiras muito efetivas e que muitas vezes levam-no a um ato de consumo pouco refletido. Não é proibido enviar publicidade, não é ilícito o uso de informações para publicidade dirigida. Muitas vezes nós consentimos ao aceitarmos os termos de privacidade e políticas de uso de cookies. A gente não lê, mas autoriza a empresa a vender ou compartilhar os nossos acessos para "melhorar a experiência", como eles dizem, por meio da publicidade direcionada. Isso nos afeta conforme ficamos mais expostos a essa tendência de consumir sem refletir.
Como podemos falar sobre poder de consumo e consumismo no Brasil quando 32,2% da população nacional vive na linha da pobreza?
Ainda que tenhamos 32% ou mais da população nacional vivendo na linha da pobreza, nós temos outros 68% que não estão. Então, nós temos um mercado de consumo com mais de 150 milhões de pessoas. É um impacto significativo, porque somos um país muito grande, então, sim, o consumo impacta em nosso comportamento. Principalmente quando percebemos que boa parte dos brasileiros acaba assumindo dívidas para consumir, adquirindo produtos de forma parcelada, muitos de necessidade básica, mas às vezes não. O fato de termos uma parcela da população abaixo da linha da pobreza mostra a nossa desigualdade, mas não podemos negar que temos uma economia em que circula muita riqueza, só que essas pessoas que fazem parte dessa parcela não têm acesso ao direito de consumir. E hoje em dia se você considera que o ato de consumir caracteriza quem você é, estou negando a essas pessoas também a possibilidade delas se expressarem a partir do consumo. É outra linha de pensamento, mas acho uma abordagem adequada nesta situação.
Como as pessoas são afetadas ao tentarem seguir altos padrões de consumo, sem necessariamente ter, de fato, o poder de compra? Podemos considerar o consumismo uma tendência hereditária?
Possuir um padrão de vida acima ou diferente do que o meu padrão econômico me permite me leva a um problema que é crônico no Brasil, o endividamento. Para manter um padrão de vida maior que o meu ganho, eu vou me endividar. Ao me endividar, eu crio um ciclo vicioso de que, para ter mais, eu preciso gastar mais, e para isso preciso me endividar mais. Então o endividamento é um problema muito sério e que está dentro do consumismo, principalmente dentro do consumismo como evasão da ansiedade. Porque às vezes a gente faz a aquisição de um produto que nunca vai usar, ou usamos apenas uma vez, mas dividimos em 12 vezes e temos que pagá-lo.
Essa nossa vontade de nos relacionarmos com o outro a partir do consumo, sim, muito fruto dessa exploração da felicidade pelo consumo, acaba levando para esse ciclo vicioso, o que leva a mais de 77% das famílias brasileiras, hoje, estarem endividadas. Isso é muito sério, porque vai levar a uma crise do próprio capitalismo, que chega em um ponto em que os consumidores não podem mais consumir, e quando não há interação de consumo, a economia para, gerando outro problema.
Particularmente, não vejo isso como uma tendência hereditária. A ansiedade, talvez, mas percebemos que a relação com o consumo muda de acordo com a geração, em razão dos produtos específicos de determinada geração, mas não é genético. Nos levamos a esse consumismo por diversos fatores, independentemente da genética.