Considerada endêmica no Brasil, a dengue é uma das doenças virais transmitidas pela picada do mosquito Aedes aegypti. O país possui um extenso histórico de combate à doença, com ações que passam desde a conscientização da população quanto aos cuidados para localizar e eliminar possíveis focos até o uso de fumacês para a diminuição das populações de mosquitos. Na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), já foi promovido um
curso de combate ao Aedes aegypti, além de existirem projetos voltados às ações contra a dengue na região. Ainda assim, de acordo com
boletim do Ministério da Saúde, já no primeiro trimestre deste ano houve aumento de 85,6% nos casos de infecção, o que chama a atenção, uma vez que esses momentos de aumento da contaminação costumam acontecer durante o verão, não em períodos de seca.
Para conversar sobre esse assunto, o Em Discussão desta semana recebe a professora Maria Célia da Silva Lanna, do Departamento de Ciências Biológicas da UFOP. Farmacêutica Bioquímica, ela possui mestrado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorado em Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com experiência na área de Microbiologia com ênfase em Virologia. Além disso, é coordenadora do projeto de extensão "Comissão de enfrentamento aos mosquitos vetores Aedes aegypti e Aedes albopictus" e do Programa de Educação Tutorial (PET) de Saúde, da UFOP.
Professora, nos últimos meses, uma nova epidemia de dengue eclodiu no Brasil, chamando a atenção para o crescimento de casos em diversas regiões do país, principalmente por ocorrer em um período de menor volume de chuva, diferentemente do que ocorria nos anos anteriores. Quais as razões para esse novo surto de infecções? O que é preciso fazer a partir de agora para lidar com esse aumento de casos?
A ocorrência mais comum de dengue realmente é no verão, quando há maior incidência de chuvas. Isso porque o mosquito fêmea tem mais disponibilidade de água empoçada para a postura dos ovos. Entretanto, já foram detectados surtos em períodos de seca no Brasil, o que é provavelmente explicado pelo acúmulo de lixo, principalmente de resíduos orgânicos, onde ocorre a proliferação dos mosquitos e o aumento de casos de dengue. Essa situação exige maior atenção às medidas de saneamento básico referentes à coleta e destinação adequada do lixo e também aos programas de ações educativas para as comunidades, referentes aos cuidados domésticos para a prevenção e eliminação dos criadouros de mosquitos vetores.
Desde 2020, as atenções de diversos setores da sociedade, em especial as instituições de saúde e os veículos de mídia, voltaram-se quase totalmente para as infecções por Sars-CoV-2. Como o combate à dengue pode ter sido prejudicado nestes últimos dois anos? As campanhas de combate a outras doenças infecciosas tiveram menor investimento nesse período?
A maior densidade demográfica na área urbana cria condições para a proliferação de vetores de diversas doenças coletivas, incluindo a dengue, mediante o surgimento dos esgotos a céu aberto e o acúmulo de lixo. Nas localidades onde há política de coleta seletiva implementada, o controle dos vetores é facilitado. Entretanto, essa ainda não é a realidade da maioria dos municípios brasileiros. Nestes últimos dois anos, as pessoas passaram mais tempo nos domicílios, de modo que houve uma maior produção de resíduos orgânicos, muitas vezes misturados aos resíduos recicláveis. O aumento do volume do lixo resulta em verdadeiros criadouros de mosquitos vetores da dengue. Acredito que as campanhas de combate a outras doenças infecciosas continuaram com os mesmos investimentos, porque fazem parte de uma agenda definida nos setores de Vigilância Epidemiológica, mas a atenção das comunidades é que foi intensificada para a Covid, negligenciando as medidas de prevenção ambiental aos mosquitos vetores.
As vacinas e as campanhas de vacinação tornaram-se assunto de grande atenção, suscitando discussões e até questionamentos quanto a seus modos de funcionamento no organismo humano, tendo em vista o desenvolvimento aparentemente rápido dos imunizantes contra a Covid-19. Nesse sentido, por que não existe uma vacina eficaz contra a dengue? O que dificulta seu desenvolvimento? O que seria preciso para isso acontecer?
O vírus da dengue pertence à família Flaviviridae e possui quatro sorotipos diferentes. É transmitido através de mosquitos, por isso são chamados de arbovírus. Os mosquitos vetores são do gênero Aedes. Até o momento, ainda não há vacinas contra a dengue disponíveis para as medidas de profilaxia, devido às dificuldades técnicas para se obter uma vacina com alto grau de segurança e eficácia. Dentre as dificuldades para o desenvolvimento de uma vacina confiável contra a dengue estão a falta de modelos animais, a necessidade em abranger todos os quatro sorotipos do vírus, o risco de estimular infecções graves e a necessidade do desenvolvimento de proteção duradoura. Atualmente existem várias vacinas em diferentes estágios de desenvolvimento que utilizam diferentes estratégias metodológicas para contornar os desafios inerentes à fisiopatologia e aos mecanismos imunológicos da dengue. Assim, para se obter uma vacina eficaz contra a doença será indispensável uma melhor compreensão sobre a imunidade natural e a imunidade estimulada pela vacinação, bem como a interação entre elas.
O combate à dengue já faz parte das ações de políticas públicas do país há muitos anos. Ainda assim, vemos acontecer momentos de surto, que colocam as autoridades da área da saúde e a população em alerta. O que é preciso para que esse combate possa ter resultados melhores e duradouros? Existem tecnologias que possam ser usadas hoje para além das práticas que já conhecemos?
O combate da dengue é bastante desafiador. Assim como as demais zoonoses, o vetor e o ambiente têm importante papel na cadeia de transmissão para o homem. Ações antropogênicas como o desmatamento com fins comerciais e as queimadas explicam o desequilíbrio ecológico. As consequências do aumento da densidade demográfica também vêm contribuindo cada vez mais para a adaptação dos mosquitos vetores ao ambiente urbano. Para que o combate seja eficiente e duradouro é necessária uma política mais incisiva, com suporte financeiro da União, que atenda ao enorme território brasileiro. As prefeituras municipais carecem de pessoal, meios de transporte e insumos. As universidades deveriam ser mais incentivadas a realizar ações educativas em parceria com as prefeituras junto às comunidades. A UFOP é uma das poucas universidades brasileiras que segue mantendo um programa efetivo e continuado contra a dengue desde 2016. Naquele ano criou-se na UFOP o Programa Institucional que atendia ao chamado do Ministério da Educação às universidades brasileiras para o enfrentamento dos vetores das arboviroses, considerando, naquela época, os altos índices de dengue e o surgimento da devastadora epidemia de zika. Diversas tecnologias têm sido desenvolvidas como alternativas no controle do Aedes aegypti, utilizando diferentes mecanismos de ação, como monitoramento seletivo da infestação, medidas sociais, dispersão de inseticidas, novos agentes de controle biológico e técnicas moleculares para controle populacional dos mosquitos, considerando também a combinação entre essas medidas.
Quais os objetivos do Programa Educativo de Enfrentamento aos Mosquitos Vetores Aedes aegypti e Aedes albopictus, que depois se transformou no projeto de extensão? Como ele propõe a associação da prevenção com as atividades educativas?
O Programa tem por objetivo vincular projetos multidisciplinares de professores de diversos departamentos da UFOP e, atualmente, projetos coordenados por mim (Iceb/UFOP - Campus Ouro Preto), pelo professor Edgard Gregory Saravia (Icea/UFOP - Campus João Monlevade) e pelo professor Rafael Alighieri Moraes (UEMG - João Monlevade). Esses projetos têm por objetivo desenvolver ações extensionistas em parceria com a administração das prefeituras dos municípios no entorno dos Campi da UFOP (Ouro Preto, Mariana, Itabirito e João Monlevade) para subsidiar os Setores da Vigilância Epidemiológica das Secretarias Municipais de Saúde nas medidas de prevenção e contenção da dengue e demais arboviroses (febre amarela, zika e chikungunya), fornecendo suporte tecnológico computacional para a organização dos bancos de dados e geração de mapas para as análises espaciais e temporais dos surtos. Além dessas, também vêm sendo firmadas parcerias com as Secretarias Municipais de Educação, que vêm alcançando o objetivo da implementação de Cursos de Extensão para Formação Continuada de Professores de Ciências, bem como a inclusão de oficinas com o "Kit UFOP - dengue como instrumento pedagógico nas aulas de ciências nas redes de ensino". As ações educativas realizadas nas escolas são amplamente divulgadas para as comunidades em geral, considerando o papel multiplicador dos alunos e professores quanto às boas medidas de prevenção e contenção da dengue.
No material produzido, vocês apontam como primeira etapa de prevenção a tentativa de evitar que haja o cruzamento entre o macho e a fêmea do mosquito. Como isso pode ocorrer? Qual a relação dessa ação com a melhor gestão do lixo, principalmente nos centros urbanos?
O mosquito fêmea Aedes aegypti se alimenta de sangue, de seiva das plantas e de materiais orgânicos. O mosquito macho se alimenta unicamente dos dois últimos. Como os esgotos a céu aberto e o lixo são ricos em matéria orgânica, este é o local de maior probabilidade de os mosquitos fêmea e macho se encontrarem, contribuindo assim para sua proliferação e aumento dos casos de dengue. Tendo em vista o foco iminente de mosquitos vetores principalmente nas lixeiras, que numericamente estão associadas à maior ocupação nas áreas urbanas, o gerenciamento adequado da coleta do lixo e dos aterros sanitários é necessário. Além disso, as ações educativas referentes aos cuidados com a limpeza doméstica, junto às escolas e demais segmentos das comunidades, são imprescindíveis para o controle dos vetores e, consequentemente, a prevenção e contenção da dengue e demais arboviroses.
Confira a
cartilha do Kit de combate ao Aedes aegypti da UFOP.
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.