A democracia tal como a conhecemos é um sistema político mais recente do que imaginamos. Distinta do modelo adotado na Grécia Antiga, onde o exercício político era restrito apenas a cidadãos que atendessem a uma série de características, a democracia contemporânea passa a ser uma tendência a partir da década de 1950, após a Segunda Guerra Mundial, ainda em um mundo bipolar, dividido entre a democracia liberal, representada pelos Estados Unidos, e o socialismo, representado pela antiga União Soviética, que se dissolveu em 1991.
Neste ano, no Brasil, haverá novas eleições para presidente da república, governador, senador, deputados federais e deputados estaduais. Em 1º de julho, tem início o período eleitoral, quando passam a valer restrições para os agentes e os órgãos públicos quanto à veiculação de conteúdo opinativo. Por isso, o Em Discussão entra num hiato até novembro. Antes, porém, tratamos do tema do processo eleitoral, levando em conta sua grande relevância para o público interno e externo da Universidade.
Para falar sobre o funcionamento do processo eleitoral, o panorama político contemporâneo e sua relação com a história recente da democracia e do voto em eleições majoritárias e proporcionais, o Em Discussão desta semana conta com a participação do professor Antonio Marcelo Jackson Ferreira da Silva, do Departamento de Educação e Tecnologias (DEETE) do Centro de Educação Aberta e a Distância (Cead) da UFOP. Seu interesse pela política teve início ainda na adolescência, quando vivenciou o momento de transição da ditadura militar para a democracia e pôde observar mudanças como o fim do bipartidarismo e a criação de novos partidos políticos, as primeiras eleições para governadores de estado desde o golpe militar em 1964, além de participar pela primeira vez de uma votação, durante votação para prefeito em 1985. O professor possui graduação em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestrado e doutorado em Ciência Política e Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).
Professor Antonio Marcelo, estamos em ano eleitoral e há um cenário político em que surgem dúvidas e críticas, além de ter se construído um cenário propenso à desinformação e à manipulação de informações sobre a importância e legitimidade da votação democrática. O que é fundamental que o eleitor saiba sobre o funcionamento das eleições no Brasil para que sejam esclarecidas as etapas do processo eleitoral, sua legitimidade e relevância para a representação política?
Nós sempre participamos de dois tipos de eleição: eleição majoritária e eleição proporcional. Na eleição majoritária ganha quem tiver mais votos. De quais eleições majoritárias participamos de tempos em tempos? Para prefeito, senador, governador e presidente da república. Esses quatro cargos são sempre ocupados por aquele que tiver mais votos. E qual o peso do voto para esse tipo de eleição? Uma pessoa sozinha não faz muita diferença nessa eleição. Somente quando você e seu grupo de amigos, de pessoas que têm os mesmos interesses, aí sim, o grupo passa a ter alguma força. Temos o segundo tipo de eleição, que é a proporcional. O que é eleição proporcional? É você pensar que, num país como o Brasil, com estados com grande população e estados com baixa população, você cria uma distribuição proporcional entre os estados em que o número de eleitos e votos ganha valor diferente para cada lugar. Qual é a regra? Começa pelo congresso nacional. Nós temos 513 deputados federais que são distribuídos da seguinte nos seguintes extremos: há o estado que elege no mínimo oito deputados e o estado que elege no máximo 70. Então, você tem a população brasileira, a população de cada estado e o peso que cada estado tem em relação à população total e quantos deputados ele poderia eleger. O único estado que pode eleger 70 deputados é São Paulo, pela população que tem. Os estados que elegem menos são Amapá, Roraima, Acre, Rondônia, Rio Grande do Norte, todos eles elegem oito deputados. Consequência prática do voto proporcional: o eleitor do Amapá, na prática, "vale mais" que o eleitor de Minas Gerais, porque com menos votos alguém se elege deputado federal no Amapá. Mas, pelo desequilíbrio populacional do Brasil, pelo território, isso é necessário. Se no voto majoritário uma pessoa não tem tanto peso, no voto proporcional [que elege vereador, deputado estadual e deputado federal] o voto do indivíduo é importantíssimo, porque como varia de estado para estado, um voto pode fazer a diferença. A cada eleição, tem deputados que conseguem se eleger por um voto e tem casos de gente que não foi eleita por um voto também.
Nunca se esqueça! Mesmo se você anular o voto, votar em branco, ou sequer comparecer à zona eleitoral para votar, alguém será eleito, independentemente do protesto. Esse protesto é legítimo? Sim. Na hora em que ocorre, como aconteceu nas últimas eleições, mais de 30% da população não votar, votou branco ou nulo, eu posso dizer que a população está cada vez mais desinteressada na política. Agora vamos à eficácia desse protesto. Se você não votar para deputado estadual e deputado federal, vai alterar alguma coisa em Minas Gerais? A resposta é não. Minas continuará elegendo seus deputados federais e estaduais. Na prática, se eu anulo meu voto ou voto em branco, a única coisa que eu consigo é que pessoas com menos votos consigam ser eleitas em virtude dos votos necessários para tanto.
Em anos recentes, nomes da política nacional e internacional foram eleitos com estratégias não tradicionais, entre as quais pode-se destacar a presença das mídias sociais e da comunicação digital, contrapondo-se à baixa presença na mídia tradicional. O que essa característica revela sobre as tendências políticas contemporâneas?
De um lado, evidentemente, uma linguagem simplesmente oral, com pessoas mandando uma mensagem no TikTok, Instagram, YouTube ou o que for, é sempre mais sedutora do que "olha, lê esse livro aqui, tem esse artigo que é muito bom e explica sobre esse assunto". Em 1954, cientistas políticos norte-americanos resolveram fazer uma pesquisa em uma cidadezinha chamada Elmira. Essa pesquisa resultou em um livro chamado "Voting""; e qual foi o resultado, para desespero geral dos cientistas que fizeram o trabalho? Que os eleitores de Elmira votavam por qualquer motivo — porque o candidato era bonito, porque o candidato era amigo da família, porque tinha prometido um emprego. Detalhe: essa pesquisa depois foi reproduzida em diversos locais do mundo e os resultados foram os mesmos. Esse susto então acabou resultando em uma expressão da ciência política chamada "irracionalidade do voto". Isso significa que a coisa mais despolitizada que existe é a eleição. Se você quer falar de política, fale fora da eleição, porque nesse momento o que vai ter é uma despolitização geral, tanto é que, com o passar dos anos, surgiu um profissional que é o marqueteiro político. Ora, se o eleitor vota por qualquer motivo, eu tenho que transformar o meu candidato em um que seja palatável para as pessoas, digerível, comprável. Na hora que não tínhamos mais o mundo bipolar da década de 1990 (quando, ainda que o eleitor fosse irracional na hora do voto, existia uma influência superior ligada à ideologia — e isso vale para qualquer lugar do mundo, inclusive aqui no Brasil), a figura do marqueteiro político ganha uma ênfase absoluta, onde, se você sabe da deficiência do seu adversário, você explora isso, sem limites éticos. Então, o que está acontecendo, quando pensamos sobre o uso dessas mídias, é apenas a intensificação, a piora de algo que já vinha sendo ruim desde a década de 1990 e que já se sabia desde a década de 1950.
Tendo em vista os desafios do período eleitoral, da política e, ainda, do exercício do voto, como criar uma cultura política construtiva e ética?
Acredito que o primeiro passo para ter ética na política é ter diferenciação entre o que é público e o que é privado, e que você não pode usar o espaço público do jeito que você bem entender. Lembrando que espaço público é aquilo que pertence a todos e não pertence a ninguém, ou seja, eu transito no espaço público, tenho meus direitos, mas não posso atrapalhar a vida dos outros. Se eu consigo distinguir isso, eu já tenho um primeiro passo para a busca de uma ética. Nós precisamos corrigir isso no dia a dia, para que quando chegarmos à eleição possamos ter um mínimo de condição para tentar fazer escolhas e até cobrar do eleito depois que ele também fizer escolhas corretas. Isso é uma coisa que não vai acontecer da noite para o dia.
Dentre as discussões recentes envolvendo o processo eleitoral, houve polêmicas quanto ao voto eletrônico, que teve sua confiabilidade questionada, e o voto impresso, apontado por seus defensores como mais confiável, passível de ser auditável. Afinal, há razão para desacreditar na segurança das urnas eletrônicas? Existem riscos reais quanto à contagem de votos e possíveis fraudes eleitorais?
Eu acompanhei o voto desde que ele era em papel e escrito à mão até a transformação do voto eletrônico e, por fim, a biometria. A afirmação é muito simples: o voto eletrônico é a forma de votar mais segura que existe, tanto que o Brasil exporta essa tecnologia, pois existem diversos países que a utilizam. Alguns podem não utilizar a tecnologia brasileira, mas copiam a ideia. Há o caso dos Estados Unidos onde vários estados que já utilizam o voto eletrônico e alguns poucos continuam com o voto em papel, mas isso tem se tornado raro agora. E por que o voto eletrônico é seguro, pensando no modelo brasileiro? Se um computador não estiver conectado à internet, um hacker não consegue fazer absolutamente nada. Cada urna é uma máquina própria, sem conexão à internet. É feita a votação, registram-se os votos num disco e depois, com esse disco, quando termina a eleição, é feita a transmissão [dos dados] para o TRE no seu estado, que por sua vez manda para o TSE em Brasília. Mas na hora dessa transmissão não pode existir um hacker que pode alterar os dados? Não tem como mandar uma mensagem criptografada e alguém conseguir captar essa mensagem. O que poderia ser feito (e em 2018 isso aconteceu): os hackers começam a mandar mensagens para o TRE e principalmente para o TSE e congestionam o sistema. Congestionando o sistema, você apenas atrasa a divulgação dos dados. Então, o máximo que é possível fazer é atrasar a totalização ou a divulgação dos dados. Alterar o voto propriamente é impossível!
Qual é o grande avanço da democracia em todos os lugares do mundo? Foi o voto secreto. Então, ninguém sabe em quem alguém votou. Isso dá uma segurança para combater qualquer violência que queira atingir as pessoas por razões eleitorais. Na hora em que se diz que tem que ter voto impresso, você está querendo dizer inclusive que vai aparecer nessa impressão o candidato em quem você votou, e aí fica óbvio o que se quer.
Com a reforma eleitoral de 2021, passa a ser válida a formação de federações partidárias, em que dois ou mais partidos se unem como uma só agremiação pelo prazo de quatro anos, referente a uma legislatura. Quais impactos poderão existir já nas eleições de 2022? Será possível perceber alguma mudança, positiva ou negativa, no funcionamento das campanhas eleitorais?
Na prática, essas federações apenas oficializam o que no cotidiano já acontecia, que é ter partidos políticos com uma afinidade que se juntam para apoiar uma mesma candidatura, geralmente candidaturas gerais, prefeito, governador ou presidente da república. A vantagem é pensar em um apoio, particularmente, aos partidos menores, que podem enfrentar problemas da cláusula de barreira, visto que eles precisam ter um número mínimo de votos. Ela é válida para os quatro anos de mandato. O grande problema que eu vejo, sinceramente, é que essa discussão de federação serve para tentar resolver problemas dos chamados "partidos nanicos". A lei partidária brasileira é muito generosa. A quantidade de partidos que nós temos hoje, se não perdi a conta, chegou a 35. Isso inviabiliza qualquer governo, qualquer congresso no mundo. Então, acho que essas federações servem mais para os partidos nanicos sobreviverem por mais algum tempo antes de sofrerem com as cláusulas de barreira.
Uma vez que o Governo Federal divulga as condutas vedadas aos agentes públicos federais durante o período eleitoral, o que inclui as universidades federais, existe algo que esses agentes possam fazer pela defesa do voto e da democracia? É possível pensar em algum momento em que as restrições ultrapassam seu limite, podendo ser consideradas danosas?
Eu não sei o que pode ser feito em relação a essas eleições de outubro, mas sim o que deve ser feito para as próximas eleições. As pessoas que fazem parte das universidades devem ter um claro compromisso. Somos servidores públicos, que têm que agir em prol do bem-estar público. A verdadeira política não acontece na hora da eleição, ela acontece entre as eleições, essa verdadeira política é exatamente isso, pensar em que a universidade pode contribuir no bem-estar público. Já fazemos muitas coisas, e acho que podemos fazer mais, inclusive em termos de informação. Eu tive um programa de rádio durante três anos e meio e de televisão durante dois anos. E aí, você vai falar em um programa de política? Não, eu entrevistava as pessoas, era uma forma de tentar expandir [a conversa], e para a minha felicidade eu consegui alguns bons resultados. É chegar e levar [informação] para o grande público, e trazer o grande público para a universidade também.
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.