Em 2015, entrou em vigor a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, com o objetivo de assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, visando à inclusão social e à cidadania. Através da política de inclusão, a deficiência não é colocada como uma condição das pessoas, e sim como algo próprio dos espaços sociais que não são inclusivos ou acessíveis a todos.
Acessibilidade e inclusão possuem significados distintos, mas coexistem como elementos essenciais para garantir que pessoas com deficiência desfrutem plenamente de seus direitos. Tornar algo acessível significa oferecer condições que igualam as oportunidades em todas as dimensões da vida, superando barreiras de acesso como uma escadaria ou demandas acadêmicas. É garantir a autonomia dos sujeitos, seja nas instalações físicas, por meio de rampas e pisos táteis, por exemplo, seja na esfera educacional, por meio de materiais adaptados e apoio pedagógico, como textos em braile, legendagem de vídeos, presença de tutores e intérpretes, abrangendo também outras situações cotidianas com que pessoas sem deficiência não se deparam na forma de barreiras.
Garantir acesso não se restringe apenas a adaptações físicas ou educacionais, é incluir ativamente a pessoa com deficiência nos espaços em que ela queira estar. A inclusão vai além da presença física e permeia as atitudes sociais, influenciando a maneira como compreendemos e lidamos com quem é diferente.
Esse é o trabalho que a Coordenadoria de Acessibilidade e Inclusão da UFOP (Cain) tem desempenhado na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) com o propósito de fortalecer o direito das pessoas com deficiência, tanto estudantes como servidores. O Em Discussão desta semana conversou com Marcelo Santana, atual coordenador da Cain, que acumula mais de 15 anos de experiência no campo da Educação Inclusiva. Marcelo é turismólogo e especialista em tradução e interpretação de Língua Brasileira de Sinais (Libras). Possui estudos voltados especialmente à educação de surdos, com foco no desenvolvimento da leitura desses sujeitos.
Marcelo, estamos completando 17 anos de criação do Núcleo de Educação Inclusiva (NEI) da UFOP, que se tornou a Cain, posteriormente. Como você avalia o desenvolvimento das ações de inclusão nesse período?
O NEI foi criado em 2006 na UFOP, através de uma resolução aprovada pelo Conselho Universitário (Cuni), para ser um núcleo que atuasse dentro da Pró-Reitoria de Graduação (Prograd), pois desde a década de 1990 estudantes com deficiência participam dos processos de seleção para os cursos de graduação e pós-graduação da Universidade. Em 2021, o NEI se desligou da Prograd e se tornou Coordenadoria de Acessibilidade e Inclusão (Cain), vinculando-se à Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (Prace). Quando ingressei na UFOP, o NEI existia há 9 anos, então peguei a transição de NEI para Cain e percebo que o trabalho desenvolvido com os alunos é o mesmo; mas, ao se tornar Coordenadoria, ganhou outra característica, uma roupagem de departamento, com mais autonomia no novo organograma da UFOP e possibilitando outro sentido na gestão de custos e no desenvolvimento de ações, que vão além do atendimento somente aos alunos e ao público-alvo da Educação Especial.
Por que o NEI foi transformado em Cain? Quais as principais mudanças ocorridas em sua atuação?
A transformação aconteceu na mudança do organograma da UFOP, quando a Instituição extinguiu os núcleos e passou a denominá-los coordenadorias. Com o Cain vinculado à Prace, entendeu-se que o trabalho na educação inclusiva precisa ser de acessibilidade e de inclusão e que isso seria melhor desenvolvido junto à assistência estudantil.
Também havia essa demanda da Instituição pelo atendimento dos estudantes com deficiência, mas não somente, já que o setor atende também técnicos administrativos e docentes. Nos dois momentos, os públicos permanecem o mesmo, mas, quando se passou para a Prace, percebeu-se que o maior público é o da assistência estudantil.
Entendeu-se também que o melhor lugar [para abrigar a Cain] é a Prace por ter uma maior autonomia no trabalho, além de possibilidades de pensar novas formas de atuação, com uma melhor estrutura de gestão de gastos e a responsabilidade conjunta com outros departamentos na construção de melhores políticas e estratégias de acessibilidade e inclusão, para além dos atendimentos a alunos e servidores, mas na permanência deles no espaço da Universidade.
A Cain auxilia nas atividades de diferentes grupos de pessoas, de acordo com suas necessidades específicas. Como podemos diferenciar esses segmentos e as ações de inclusão e acessibilidade?
O público atendido na UFOP é denominado como Educação Especial na perspectiva de uma educação inclusiva, que prefiro chamar de Inclusão na Educação. Essas pessoas, especificamente, são pessoas com deficiência, seja transtorno global de desenvolvimento, como algumas síndromes, sendo a maior delas o transtorno do espectro autista e altas habilidades e superdotação, ou outras síndromes raras que vão caracterizando esse público. Lembrando que esse público é aquele que tem barreiras ao longo da vida. Então desenvolvemos estratégias pensando na sua acessibilidade e inclusão, oferecendo serviços de adaptação de materiais, incluindo materiais como textos e até as aulas convencionais que os alunos sem deficiência possuem, mas que alunos com deficiência podem ter dificuldade de acessar.
Um exemplo é o atendimento ao aluno com deficiência visual ou cegueira, em que a gente transforma o material textual em braile. Para os alunos com deficiência auditiva ou surdos, a gente tem os intérpretes de Libras nos departamentos, que também fazem o acompanhamento acadêmico desses alunos. Além disso, são realizadas legendagem de vídeos, audiodescrição e, se for o caso, gravação de audiobook, além de outras formas de criação desse material inclusivo. Quando digo inclusivo é pensando na demanda do próprio estudante com deficiência. Prezamos pela autonomia, individualidade e especificidade de cada um quando auxiliamos outros departamentos da Universidade no que tange à acessibilidade nos campi da UFOP.
Mas essa atuação vai além. Por exemplo, quando somos procurados pela Prefeitura do Campus para a instalação dos pisos táteis na Universidade, eles nos procuram para solicitar orientação de como agir, onde instalar, o que fazer e o que não fazer, se é viável ou não. Outro exemplo é quando a Cain solicita a poda das árvores porque os alunos com deficiência visual ou cegueira não conseguem transitar livremente. Esse aluno pode usar uma bengala que passa por debaixo da árvore, mas se a copa estiver muito grande, pode ter o risco de ele bater a cabeça nos galhos. São muitas situações corriqueiras aos olhos de quem não tem deficiências, mas que se mostram como uma barreira aos que as possuem. Então o nosso trabalho é também diligenciar isso, na medida do possível, nos departamentos e nos espaços da Universidade, ao incluir toda a vida acadêmica ao aluno, tanto no campus quanto nas moradias.
Como você avalia as atividades disponibilizadas para amparo e inclusão de pessoas na Universidade? Percebe formatos diferentes em outras instituições federais de ensino superior?
Cada instituição possui um nome específico para os Núcleos de Acessibilidade e Inclusão (NAI) e funções diferentes para lidar com a demanda de atendimentos conforme a autonomia universitária. A UFOP é pioneira nesse trabalho, principalmente aqui na região Sudeste e em Minas Gerias. Criamos formas próprias de atender esse público, de disponibilizar o próprio material adaptado e tecnologias para os alunos com deficiência e no atendimento pedagógico direcionado ao estudante. Ao mesmo tempo, consultamos esses NAIs, assim como também somos consultados. Então, esse trabalho se baseia na ação própria e no diálogo entre as instituições, não para unificar o atendimento, mas para entender como desenvolver a acessibilidade e inclusão na universidade. Isso gera um ganho de força na construção dessa política de inclusão e uma similaridade de atendimento nas particularidades de cada instituição, porque cada uma recebe um público diferente. A UFOP tem um público, a UFMG tem outro, cada uma tem seu nicho e sua forma de atuar.
Qual impacto você verifica das atividades de inclusão e acessibilidade na comunidade estudantil? Esse pode ser um diferencial para atração de novos estudantes?
Tenho uma boa avaliação sobre esse trabalho desenvolvido na UFOP, mas acredito que a gente pode ser melhor, porque temos muito para crescer. Particularmente, acredito que faltam pessoas que venham com disposição para trabalhar com acessibilidade e inclusão. Ao mesmo tempo, com o pouco que temos, conseguimos realizar um trabalho bom na medida do que é possível e atuando na quebra de algumas das barreiras existentes. Sempre digo que na Cain a gente trabalha na tentativa de garantir os direitos, porque o direito existe, mas a Coordenadoria sozinha não consegue fazer tudo. Dependemos de outros setores da Universidade para que a acessibilidade e a inclusão funcionem. Por mais que os outros departamentos enxerguem a Cain como esse local de garantia de direitos, aqui é só o pontapé inicial. Precisamos dessa atuação coletiva para quebrar barreiras atitudinais, arquitetônicas e sensoriais existentes, mas principalmente as barreiras atitudinais, que são as atitudes de cada pessoa, para que se trabalhe uma sensibilidade e mobilização de atuação, seja com uma didática pedagógica ou com a forma de tratar o diferente.
É entendido que o diferente existe, assim como existem formas de atuar para possibilitar o espaço da Universidade para todos que nela queiram estar; mas é preciso deixar claro que a inclusão está em um campo que ainda precisamos melhorar, e a acessibilidade é outro campo que precisa melhorar ainda mais. A cada dia a gente tem conseguido fazer com que esses estudantes ganhem mais autonomia e novos espaços para a sua vida acadêmica. Por exemplo, as moradias estudantis, que antes não recebiam alunos com deficiência por conta do acesso e da inclusão destes com os outros moradores, têm mudado, e hoje percebemos que eles estão adentrando e permanecendo nas casas. Existe um diálogo maior entre os colegas de casa, propiciando um entendimento nas questões que parecem mínimas, mas que são barreiras e os ajudam a entender o espaço em que estão. A ideia também é criar condições para minimizar essas barreiras, e isto é [feito] implementando elevadores nos prédios, mudando um vaso de planta que está numa posição que atrapalha o acesso e outras coisas. Se o estudante com deficiência encontrar alguma barreira, ele vem até a gente e relata e buscamos atuar em cima disso. Se não encontrou, ele continua seguindo com sua autonomia na Universidade.
Qual a importância e como resguardar o direito de sigilo das pessoas com deficiência (PCDs) e com necessidade educacionais especiais (NEEs), garantindo, ao mesmo tempo, a disponibilização de atividades pedagógicas e atenção adequadas?
É preciso deixar claro que a Cain atua no campo da pessoa com deficiência e altas habilidades, e esse termo Necessidades Educacionais Especiais trata de outras coisas. A pessoa com NEE pode ser, por exemplo, uma pessoa que precisa utilizar óculos, o que é diferente de uma pessoa com uma deficiência que é uma barreira ao longo da vida. Então se trata de uma situação que não vai se resolver com coisas simples e questões práticas do dia a dia. Outro exemplo é um usuário de cadeiras de rodas impedido de subir uma escadaria porque não consegue subir os degraus. Para isso, precisamos instalar um elevador, que é uma necessidade especial dele e que é diferente de outras. Essas necessidades educacionais, com essa sigla NEEs, abrange um campo de transtornos de aprendizagem e a Cain não trabalha com esse público. Os estudantes com deficiência possuem necessidades, mas cada sujeito possui uma especificidade diferente e particular, porque cada ser é único. Então não posso trazer, por exemplo, a pessoa com deficiência, como autismo e uma com deficiência visual ou cegueira, e colocar todas elas na mesma caixinha. É preciso diversificar e entender que cada indivíduo é um e cada indivíduo traz uma particularidade.
Sobre a questão do resguardo de sigilo, primeiro se tem essa preocupação por questões de vida, acredito que o resguardo faz parte do direito que o sujeito tem de exercer a sua autonomia sem precisar ser exposto. Um segundo ponto importante é entender a particularidade dele na vivência acadêmica ao ponto de que ele consiga realizar as suas atividades de forma autônoma e com menos barreiras possível. Esse direito de resguardo é para que a pessoa não seja estereotipada na Universidade, mas que ela seja tratada assim como qualquer outra pessoa que não tem características ou não tem deficiência alguma.
A Cain atende também os servidores. Como é realizado esse suporte e a inserção dessas pessoas na execução do trabalho?
Primeiro a Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (Progep) nos procura quando há algum servidor com deficiência ou altas habilidades. Estabelecemos, então, um diálogo com esse servidor para ouvir suas necessidade e experiências fora da UFOP e entender como ele vem trabalhando e desenvolvendo esse trabalho. Procuramos identificar quais são as barreiras apresentadas até aquele momento ou até o ingresso na Universidade. Posteriormente, vamos até o setor onde essa pessoa está lotada e iniciamos um processo de acompanhamento desse servidor. O intuito é sempre ouvir e aconselhar, e, caso seja necessária alguma intervenção, a Cain e a Progep lidam com a situação.
Mas como afirmei antes, a Cain trabalha na tentativa de garantir o direito dessas pessoas e, uma vez que elas vão até a Coordenadoria, o nosso trabalho está voltando ao servidor, especificamente, nesse processo de entender como seu trabalho é realizado e quais barreiras existem, e, caso haja necessidade, realizamos as modificações no setor onde ele está. Mas garantir que o setor esteja acessível a ele é difícil dizer, porque dependemos de outros fatores. Por exemplo, já sugerimos que o servidor faça outro serviço porque aquele setor ou prédio não possui uma acessibilidade. Mas aí entra no campo da acessibilidade, e a inclusão depende muito da superação das barreiras atitudinais dos seus colegas de trabalho. Esse diálogo acontece com o setor também, antes ou depois do ingresso desses servidores, para que todos entendam essa diferença do novo colega que tenha características de deficiência.
Quais os principais desafios para a construção e o fortalecimento da aceitação natural de políticas de acessibilidade na Instituição?
A quebra das barreiras atitudinais. A gente ainda encontra muitas pessoas com preconceitos com a diferença. Vimos esses preconceitos se mostrarem na insegurança, nas incertezas e no próprio fato de não saber trabalhar com o diferente. Isso é não saber aceitar a diferença e é o principal desafio enfrentado. Para pensar o fortalecimento das políticas é preciso ter essa compreensão, porque aceitar isso é o primeiro passo para conseguir pensar estratégias de inclusão e acessibilidade. Na Cain, estamos pensando em como fortalecer essa política dentro dos setores. Estamos com uma proposta de uma nova política de inclusão e acessibilidade para a UFOP, mas precisamos do apoio de outros departamentos e, principalmente, docentes, assim como representantes discentes e servidores com deficiência para nos ajudar a pensar estratégias e ações, visto que é uma política institucional. É a mudança de atitude, entendendo que a política precisa ser construída também por aqueles que vão ser beneficiados por ela.
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.
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