"Fica até parecendo que os criminosos somos nós, e não a Vale". Este foi apenas um dentre os diversos relatos colhidos por Lia de Mendonça Porto em uma de suas imersões — a mais longa, de 40 dias — em Brumadinho, Região Metropolitana de Belo Horizonte, um ano após o desastre-crime que levou embora a vida de 272 pessoas, mudando para sempre a rotina de outras milhares. Entre elas, familiares das vítimas, reconhecidos oficialmente por sua relação de parentesco "em primeiro grau" para fins de indenização: pais, filhos, irmãos e cônjuges. Mas também namorados, avós e amigos, todos ignorados por uma ação compensatória prognosticada que não se prestou a calcular o valor da vida de seus companheiros, netos e sobrinhos. E ainda, todos os demais moradores locais que não tiveram perdas (humanas) diretas, mas foram atingidos por ações impositivas da mineradora, que agora julgam os indenizados, considerando-os "privilegiados" por terem recebido da mineradora algum dinheiro — como se a perda afetiva pudesse ser, de alguma forma, suprida por valores monetários.
Por toda essa complexidade, a pesquisadora e professora associada da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) propõe a distinção entre "Atingidos" e "atingidos", uma abordagem que evita a referência simplificadora às comunidades afetadas pelos mais de doze milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro em 25 de janeiro de 2019.
Doutora em Engenharia Química, Lia reitera que parte desta reflexão representa uma guinada em sua trajetória acadêmica. Entusiasta das questões socioambientais, ela agora aproxima as perspectivas da Antropologia com as da Engenharia e da Ecologia para descrever um "fenômeno intrincado", objeto de pesquisa de seu estágio pós-doutoral na Universidade Federal do Paraná (UFPR), momentaneamente interrompido pela impossibilidade de se conduzir um estudo etnográfico em meio à pandemia.
Neste "Em Discussão", conversamos um pouco sobre a abordagem multidisciplinar de sua pesquisa, sobre a coleta dos relatos recém-apresentados na nona edição do Congresso Brasileiro de Direito Socioambiental, sobre o modelo centenário de exploração minerária que atravessa as histórias das Minas Gerais e também sobre os impactos que a pandemia causou nos Atingidos e atingidos de Brumadinho.
Como foi o início de sua relação com a história dos últimos rompimentos de barragens da mineradora Vale em Minas?
Os rejeitos da indústria têm sido objeto de estudo das minhas pesquisas nos últimos 15 anos. Quando aconteceu a ruptura da barragem do Fundão, em Mariana, comecei a perceber a profundidade de alguns conflitos, mas fiquei afastada daquele processo, porque ainda não tinha o aparato teórico para abordar as questões socioambientais. Mas, apesar de a engenharia química ter ocupado boa parte da minha trajetória acadêmica, eu carrego também a experiência muito marcante como voluntária no Centro de Valorização da Vida (CVV), que me permitiu desenvolver a capacidade de escuta, de ouvir o outro. Então, em 2019, com a ruptura da barragem de Brumadinho, fui até a cidade como integrante do programa de ação "Malas Prontas", para prestar apoio emocional contra o suicídio. A partir dali, passei a olhar melhor para determinadas questões relacionadas aos desastres-crimes.
E durante quanto tempo você coletou os relatos apresentados? E como a abordagem multidisciplinar, entre a antropologia e a sustentabilidade, pôde ajudar no processo?
Passei 40 dias em Brumadinho, entre dezembro de 2019, para as primeiras datas festivas após a ruptura da barragem, e janeiro de 2020, para o "aniversário" do desastre-crime — o que não foi suficiente, mas me permitiu empreender as primeiras entrevistas e começar a entender a complexidade da percepção dos moradores acerca de quem ou como foi atingido pelo rompimento da barragem. Todos os dados foram coletados antes da pandemia, portanto. Já a escolha por uma abordagem etnográfica surgiu como indicação de meu orientador, o professor Ricardo Cid Fernandes, da UFPR, quando percebi que minhas ferramentas não eram suficientes para descrever empiricamente a grande modificação do contexto socioambiental daquelas comunidades.
Você propõe a distinção entre Atingidos, com inicial maiúscula, e atingidos, com inicial minúscula. Pode falar mais sobre isso?
Proponho, principalmente, a distinção entre aquelas pessoas oficialmente reconhecidas como Atingidas diretamente pela ruptura da barragem, e aquelas que foram reconhecidas de forma genérica pela Justiça, as atingidas. Entretanto, essa não é a única diferença. Se eu pudesse apresentar maneiras para mostrar a heterogeneidade entre os grupos sociais atingidos, das mais diversas formas, eu faria. Entre eles estão os moradores das comunidades onde o compensatório está alocado, por exemplo, como na Ponte das Almorreimas, anterior ao trajeto da onda vermelha, que recebeu todos os animais resgatados da lama, além de servir como "depósito" para os rejeitos coletados nas margens do Rio Paraopeba, algo definido por ordem judicial. Também na área da Ponte foi construída a adutora de água, um conjunto imenso de tubulações que garantiriam o conduto forçado do recurso.
Na sua pesquisa você menciona a "morte social" de uma comunidade centenária. A morte social não é considerada, muitas vezes, em processos como esse, não é?
É que a gente tem o costume de ver a morte como um acontecimento individual, nunca social. No entanto, os subdistritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana, foram destruídos em 2015. As pessoas perderam suas casas, suas lembranças e os espaços que entrelaçavam seus vínculos sociais. Inclusive, passaram a ser discriminadas em Mariana, como se fossem responsáveis pelo crime, e não vítimas. Daí alguém pode falar: "nossa, mas que bobagem". Não. Nós vivemos em um mundo material, temos muito vínculo com o território. Nós nos identificamos com os espaços ao nosso redor, nos projetamos nele. A reconstrução desses espaços pode auxiliar a retomada dessas vidas, mas não vai devolver a essas pessoas o que elas tiveram antes. A morte social é um fato. E é importante lembrarmos que todas essas comunidades já existiam antes da construção dessas barragens. Apenas a Vale é a responsável. O crime é dela.
A Vale promete, há anos, entregar as casas das pessoas atingidas em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo — um prazo estendido ad aeternum pela multinacional —, o que não a impediu de continuar com suas atividades em diversos pontos do País, e também de retomá-las em Mariana, em 2020. Há, inclusive na Região dos Inconfidentes, barragens com risco reconhecido de rompimento — mas nunca a menção, pelo Governo, de interdição. Por que, no Brasil, é tão difícil penalizar os culpados por crimes socioambientais?
Em 1998, surge a
lei contra crimes ambientais. Lá, se fala de punição para a pessoa física ou jurídica que comete algum crime ambiental. Só que, dentro de nosso contexto, é preciso uma análise especial do Direito. E é aí que tudo fica mais complicado. A legislação não tem uma forma de punição definida, ela é estudada a cada caso — por isso a demora em se resolver isso juridicamente. Outro fator que precisa ser mencionado é que a "morte social" não é considerada por nossa sociedade como algo gravíssimo. Além disso, quem tem poder financeiro tem acesso privilegiado à Justiça, enquanto quem não tem fica à margem de seus direitos legalmente reconhecidos.
Muitos em Mariana foram afetados com a paralisação das ações da Vale. Isso mostra o quanto estamos submetidos a esse modelo extrativista. Concorda?
É claro. Nosso país, desde sempre, tem um entendimento de si como um "espaço a ser explorado". E isso me preocupa muito porque quando assumimos essa característica, não conseguimos enxergar outras. A gente não muda a forma de pensar de uma sociedade, de um grupo social, de forma espontânea. Tudo tem uma história, que não consegue, principalmente em Minas Gerais, se desvincular da lógica minerária.
E a história de Ouro Preto é carregada por esse mesmo modelo, correto?
Sim. Durante uns cinquenta anos fomos o centro da economia mundial. Quando deixamos de ser interessantes aos exploradores, financeiramente falando, fomos abandonados. Em Mariana, a reabertura da mineradora não se dá por um surto de consciência social ante a necessidade de retomar postos de empregos. Não. Para a Vale, temos muito a oferecer. Ainda. Se todas as pessoas que leem a gente pudessem ver, em Brumadinho, a quantidade de trens que passam carregados de minério de ferro, todos os dias, à vista de toda a cidade, elas ficariam assustadas.
Pensar em um novo modelo é possível?
Sim. Mas não é um processo simples. Muito pelo contrário, exige políticas públicas, penalização e financiamento pela mineradora. Não é algo que possa ser feito de forma espontânea por nós ou pelos atingidos. E a história de Ouro Preto serve para que possamos antever nos dois últimos desastres-crimes a mudança necessária desse nosso modelo econômico. As pessoas que pedem a volta da Vale em suas cidades dependem dos recursos da empresa para sobreviver. E essas devem ser as primeiras socorridas por esse novo sistema.
Você acha que a pandemia afetou o cenário em Brumadinho? De que maneira?
Eu posso te responder com outra pergunta: como as 272 mortes de Brumadinho passam a ser interpretadas pelo senso comum num contexto de 500 mil mortes pela pandemia? Além disso, a paralisação da busca pelos 11 corpos desaparecidos, retomada e, pouco depois, novamente interrompida, foi um grande abalo para parentes e amigos das vítimas. Acrescenta-se a isso que, logo no começo da pandemia, a Vale também iniciou um processo judicial contra os manifestantes brumadinhenses, alegando que promoviam aglomerações. Isto é, perderam a possibilidade de reivindicar seus direitos, bem como de alertar a todos os outros de que as coisas não vão bem.
E como estão as perspectivas para o futuro?
Acho que a ideia de futuro está em suspenso, sabe? Sendo honesta, eu não sei te responder essa. De acordo com dados do IBGE, um terço da população de Brumadinho vivia com renda inferior a meio salário mínimo antes do desastre-crime. Devido ao reconhecimento de que a cidade havia sido atingida como um todo, foi oferecido aos moradores um auxílio emergencial. Só que esse dinheiro não é para sempre — foi estendido com valor reduzido, devido à pandemia, mas vai acabar. Eu ouvi de pessoas o seguinte: "Eu não era a favor do auxílio emergencial. Mas agora que ele veio, ele não pode mais acabar". Então, eu me pergunto: o que acontecerá com a cidade e seus moradores quando ocorrer o fim do auxílio emergencial e o grande problema do desemprego se instaurar de forma definitiva?
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.