O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, foi criado em 2003 com o objetivo de promover a reflexão acerca da inserção dos negros na sociedade brasileira. O Em Discussão desta semana traz a conversa sobre os espaços ocupados por pessoas negras na comunidade científica.
O convidado é o vice-coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e vice-líder do Grupo de Pesquisas sobre Linguagens, Cultura e Identidades (Gelci/UFOP), Clézio Gonçalves.
1. É notório que o campo da pesquisa é composto majoritariamente por pessoas de pele branca. Quais os principais desafios que os pesquisadores negros encontram para crescer em seus campos?
Além das dificuldades e dos desafios enfrentados por todos os pesquisadores brasileiros, nesse cenário atual de cortes de apoios financeiros às atividades de pesquisa em nosso país, é fato que os pesquisadores negros ainda precisam conviver com o racismo estrutural e o racismo institucional presentes no mundo acadêmico, científico e em outros espaços. É fato que intelectuais negros e negras, do porte de Abdias do Nascimento, Lélia Gonzales, Milton Santos e Petronilha Gonçalves Silva, passaram e continuam passando por dificuldades e por desafios, na tentativa de "furar a bolha" e conseguir um "lugar ao sol", ocupando um lugar de direito em sua área de pesquisa e de atuação, impossibilitados, quase sempre, de debater a questão racial brasileira de forma franca, profunda, sem medo de represálias e com apoio ou solidariedade racial. Ressalta-se aqui, ainda, o fato de que os temas de pesquisa abordados pelos intelectuais negros não se reduzem, exclusivamente, às temáticas raciais, e que, mesmo assim, a exclusão, quase sempre, acontece pela cor da pele. A ética da convicção antirracista que tem condicionado a atividade acadêmico-científica dos pesquisadores negros e dos negros pesquisadores, historicamente, não impediu que esses mesmos intelectuais venham sendo excluídos do espaço de "ciência" no Brasil, sendo considerados, muitas vezes, como objetos de pesquisa, como seres subordinados e dependentes do conhecimento colonizador eurocêntrico. A considerar o fato de que os editais, em sua maioria sem cotas para negros, partem da premissa da igualdade entre os concorrentes, fazendo vistas grossas às trajetórias e às oportunidades pretéritas dos pesquisadores.
2. Ações como a lei de cotas conseguiram fazer com que mais pessoas pretas e pardas tivessem acesso à universidade pública de qualidade. Entretanto, segue sendo muito desproporcional a quantidade de estudantes negros em relação aos brancos — principalmente nos cursos de alto prestígio, como Medicina. Ainda assim, é possível ver mudanças significativas no meio acadêmico?
A ideia de mérito acadêmico universalista, que parte da premissa da igualdade entre os indivíduos, enquanto faz vistas grossas à vivência de cada um e às experiências e às oportunidades dos indivíduos, precisa ser, urgente e avassaladoramente, discutida e repensada. O acesso ao ensino superior de pessoas negras (pretas e pardas), quilombolas, indígenas, com deficiência, de baixa renda e oriundas de escola pública precisa se concretizar com garantias de que esses jovens estão concorrendo com seus pares de maneira honesta e igualitária, direitos garantidos pela Lei 12.711/02 e princípios norteadores das políticas e ações afirmativas. As mudanças acontecem a passos lentos, se compararmos com os anos anteriores à "Lei de Cotas". No entanto, ainda é uma mudança muito tímida, pois não depende, exclusivamente, de políticas e ações da universidade, mas da sociedade e, sobretudo, de políticas afirmativas para a população vulnerável e atingida pelas desigualdades sociais. Destaco o fato de que, mesmo diante da escassez de políticas de permanência, nos dizeres do intelectual negro Abdias do Nascimento, os estudantes negros e negras que entram na universidade conseguem se sobressair em relação ao desempenho acadêmico, sendo agentes de mudança e de transformação, a partir de temáticas inovadoras que propõem em suas pesquisas e em calorosas discussões em salas de aula. Exemplificando, com base no Relatório de Gestão da UFOP (2020), referente aos anos de 2017–2019, no caso do curso de Medicina, dos 474 (quatrocentos e setenta e quatro) alunos no total, 255 (duzentos e cinquenta e cinco) se autodeclaram brancos, enquanto que apenas 47 (quarenta e sete) se autodeclaram negros (pretos = 18, pardos = 29). Somam-se a isso os seguintes dados: oito se autodeclaram amarelos e 33 (trinta e três) não fazem a autodeclaração. Ou seja, contra fatos e dados, não há argumentos.
3. Como núcleos que focam no estudo de questões étnico-raciais auxiliam na mudança do cenário que os pesquisadores negros encontram na academia?
Quando se afirma que a branquitude implica vantagens materiais e simbólicas aos brancos em detrimento dos negros, é preciso destacar que tais vantagens são frutos de uma desigualdade na distribuição de poder (político, econômico e social) e de bens materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados, até hoje, não sendo diferente no universo acadêmico. Os coletivos, os núcleos e os grupos correlatos comprometidos com as questões étnico-raciais e, sobretudo, comprometidos com o enfrentamento das desigualdades raciais na Educação, têm um papel fundamental na mudança desse cenário, quando a partir de um lócus privilegiado de formação, de articulação, de debates e de elaboração de propostas de estudos de intelectuais negros e não negros, de maneira pró-ativa, atuam de maneira ordenada e coletiva para construir, com base nas ações e nos exemplos dos nossos ancestrais, um ambiente mais humano e, consequentemente, mais propício para a elaboração de epistemologias negras, para a diversidade e a pluralidade das ações científicas e acadêmicas de toda a comunidade universitária. Os Neabs e Neabis, além de terem se tornado centros de excelência de pesquisa, ensino e extensão, primam pela formação inicial dos alunos e das alunas integrantes dos núcleos, desde a graduação, destacando-se, inclusive, uma sólida atuação extensionista dos integrantes e dos pesquisadores com realização de projetos em parceria com os coletivos e os movimentos negros nas comunidades ao redor da universidade, colaborando significativamente com o crescimento e a consolidação das universidades.
4. Fale um pouco sobre o papel do Neabi/UFOP. Quais pesquisas e projetos são, ou já foram, desenvolvidos pelo grupo?
O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, de acordo com o seu regimento, vem, sistemática, incessante e ininterruptamente: (i) sensibilizando e, sobretudo, mobilizando a comunidade acadêmica (docentes, discentes e técnicos administrativos) e a comunidade externa acerca das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais, História e Cultura Africana, Afro-Brasileira e Indígena, em diálogo com os marcadores sociais da diferença (gênero, orientação sexual, religião, classe social etc.); (ii) estimulando a pesquisa, o ensino, a extensão e o debate, no âmbito da UFOP, em torno das questões relacionadas aos afro-brasileiros, africanos e indígenas, em articulação com as diferentes áreas do conhecimento desta Uuniversidade, com ações e projetos concretos; (iii) planejando e ministrando cursos junto às secretarias municipais de educação e superintendências regionais de ensino, para a implementação das alterações da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (LDBEN), a saber, nos termos das Leis 10.639/03 e 11.645/08, com destaque nas regiões onde há presença da UFOP; (iv) incentivando a criação de programas institucionais de formação inicial e continuada para acadêmicas(os), servidoras(es) e sociedade civil, em relação à temática afro-brasileira, africana e indígena; (v) promovendo congressos, seminários e fóruns de discussão em busca da formação de uma sociedade que reconheça e respeite a diversidade étnico-racial brasileira; (vi) instituindo mecanismos de acompanhamento do processo de implementação e avaliação das Políticas de Ação Afirmativa da UFOP; (vii) coordenando as ações e investimentos financeiros, humanos e materiais, com vistas à conformação de uma política de combate ao racismo institucional na UFOP, (viii) promovendo o intercâmbio com as instituições de ensino brasileiras e estrangeiras, ONGs e setores público e privado para discussão de problemas referentes às questões afro-brasileiras, africanas e indígenas; (ix) realizando encontros com especialistas para que toda a comunidade da UFOP, bem como a comunidade externa, possa participar e tomar conhecimento das ações empreendidas pelo Neabi/UFOP; (x) incentivando projetos de apoio ao acesso de estudantes afro-brasileiros, africanos e indígenas na UFOP, como: coletâneas, e-books e livros publicados, cursos de especialização lato sensu, cursos de aperfeiçoamento e qualificação, projetos de extensão, congressos nacionais e internacionais, parcerias com movimentos e coletivos das cidades de João Monlevade, Mariana e Ouro Preto, minicursos no Encontro de Saberes, lives, webinares, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), Programa de Incentivo à Diversidade e Convivência (Pidic), projetos de iniciação científica, entre outras ações e iniciativas coletivas. Registra-se que, em âmbito nacional, a atuação dos Neabs e Neabis vêm fortalecendo as políticas de ação afirmativa, com base, especificamente, nas Leis 10.639/03, 11.645/08 e 12.711/12.
5. Existe uma ideia, principalmente dentro da imprensa, de que cientistas negros são convidados para falar somente de temas relacionados à etnia, excluindo-os das ciências da saúde, exatas, naturais, entre outras. Como esse erro contribui para a marginalização desses pesquisadores frente à ciência do país?
É uma pena que, ainda, há profissionais na mídia que desconheçam completamente a competência e a formação sólida, diversa e plural de muitos intelectuais negros e negras, que têm suas vozes silenciadas, quando lhes negam o espaço que deveria ser para não negros e negros, sem distinção de cor. Isso é mais uma prova de que, inegavelmente, o Brasil é um país desigual, de modo que facilmente identificam-se as desigualdades e as disparidades entre não negros e negros, enraizadas na estrutura. É um grande equívoco da imprensa, sobretudo, desconhecer ou, propositalmente, desconsiderar as áreas científicas da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), que têm como intuito planejar e promover os trabalhos desenvolvidos em diversas áreas do saber, possibilitando, assim, que os pesquisadores negros e negras possam divulgar seus trabalhos junto à comunidade científica e à população em geral. Cito aqui algumas áreas científicas que vêm sendo abraçadas pelos pesquisadores negros e não negros com discussões e pesquisas de reconhecimento nacional e internacional sobre componentes étnico-raciais, a saber: Memória e Patrimônio, Arquitetura e Urbanismo, Engenharia, Química, Ciência e Tecnologias, Saúde, Comunicação e Mídia, Filosofia, Literatura, Linguagem, Artes, entre outras. Observa-se, portanto, que o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, bem como do racismo estrutural. Para o professor, escritor e pesquisador Sílvio Almeida (2018), o racismo é parte de um processo social que ocorre pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição. É possível perceber, na maioria das vezes, o racismo na forma individual ou por grupos específicos, ou seja, manifestações que resultem em discriminações direta ou indiretamente, disseminando, desse modo, um juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a certo grupo. O racismo, ainda que possa ocorrer de maneira indireta, manifesta-se, principalmente, na forma de discriminação direta, complementa Almeida (2018). O racismo é uma imoralidade e também um crime que exige que aqueles que o praticam sejam devidamente responsabilizados — disso estamos convictos. Porém, não podemos deixar de apontar o fato de que a concepção individualista, por ser frágil e limitada, tem sido a base de análises sobre o racismo absolutamente carentes de história e de reflexão sobre seus efeitos concretos. O racismo não é somente resultado de comportamento individual, mas sim do funcionamento das instituições, que atuam a partir de desvantagens e privilégios, a partir do componente racial.
6. Em 2003 foi criada a Lei 10.639, que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas. De que maneira essa lei contribui para mudanças estruturais na educação?
A Lei 10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) e legisla sobre a obrigatoriedade da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no currículo escolar do Ensino Médio e Fundamental na rede pública e particular de ensino, em 2021, completou 18 anos, a maior idade pelos ditos jurídicos nacionais. Com isso, consideramos como uma primeira grande conquista o fato de a lei não ter sido revogada, por exemplo, permitindo que pudesse corrigir uma injustiça histórica e abrir mais espaços para a discussão sobre a discriminação racial e incentivar maior contato com a riqueza da cultura africana e afro-brasileira e sua contribuição na consolidação da nossa sociedade, estimulando a reflexão sobre a condição do homem negro e da mulher negra no contexto histórico, social e econômico brasileiro e, principalmente, nos colocando no mesmo patamar das demais culturas, fomentando o reconhecimento e a valorização da identidade da população afro-brasileira e africana. No entanto, é, além de preocupante, muito angustiante para nós educadores constatar que a Lei 10.639/03, que poderia transformar a escola brasileira em uma escola diversa, plural, antirracista e republicana, complete sua maior idade sem se institucionalizar e galgar o degrau de política pública, sem se enraizar nos projetos políticos pedagógicos da escola. Apesar de reconhecermos o magnífico trabalho que muitos professores e alguns diretores de escolas desenvolvem pelo Brasil, eles não conseguem, em alguns lugares, romper as barreiras do racismo institucional na escola, porque seus projetos se individualizam, e muitos são os desafios para a construção de ações junto à comunidade escolar, principalmente nos tempos que vivemos, de exacerbação do ódio, do racismo, da misoginia, da homofobia, da transfobia e do fascismo. É possível constatar que falta vontade política dos executivos federais, estaduais e municipais, falta um monitoramento e uma cobrança mais rigorosa das instâncias responsáveis pela fiscalização do cumprimento da Lei 10.639/03. A Lei pode, sim, contribuir com a mudança estrutural escolar, à medida que legitima: (i) a vasta produção intelectual dos Neabs e Neabis; (ii) as propostas de cursos de formação inicial e continuada; (iii) o fortalecimento dos coletivos, dos núcleos, dos movimentos negros e grupos correlatos, ou seja, a lei não se restringe apenas à obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Concluindo, a Lei é capaz de contribuir diretamente para as mudanças estruturais na Educação, na medida em que é reconhecida com o fato de que não se trata simplesmente de incluir os negros e integrá-los numa sociedade que secularmente os exclui e os desqualifica, mas de oferecer uma educação que lhes permita assumirem-se como cidadãos autônomos, críticos e participativos, nos dizeres da pesquisadora Petronilha Silva.
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.