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Liberdade de imprensa e liberdade de expressão, semelhanças e diferenças

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A comunicação é algo intrínseco ao ser humano. Afinal, o homem é um ser social e essa sociabilidade se dá por meio da comunicação. Essa comunicação se dá de diversas formas, nas mais variadas manifestação, e uma delas é a liberdade de imprensa. No Brasil, a imprensa surge em 1808, após a chegada da família real portuguesa. Porém, é somente 80 anos mais tarde, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que é garantida a liberdade de imprensa, assim como a liberdade de expressão. Mas qual a diferença entre as duas?
 
Para falar sobre esse assunto, o Em Discussão convidou a professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Karina Gomes Barbosa, doutora em Comunicação Social pela Universidade de Brasília e pesquisadora permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM-UFOP). Karina coordena o grupo de pesquisa Ponto, do programa de extensão institucional "Sujeitos de suas histórias", e o projeto de incentivo à diversidade "Ariadnes". Além disso, é co-coordenadora da Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami), da Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), e integra a Rede de Pesquisa em Comunicação, Infâncias e Adolescências (Recria).
 
Professora Karina, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são garantidas por lei. A primeira é a liberdade de emitir opiniões, ter acesso e transmitir informações e ideias, por qualquer meio de comunicação. Já a segunda decorre do direito de informação e diz respeito à possibilidade de o cidadão criar ou ter acesso a diversas fontes de dados, tais como notícias, livros, jornais, sem interferência do Estado. Por que é comum a confusão desses conceitos?
 
Acho que porque eles têm a ver com a participação na esfera pública, com a possibilidade de você emitir suas opiniões a partir de uma série de garantias de que você não vai ser censurado, não vai ser perseguido e vai ter um ambiente de expressão. A diferença é que liberdade de imprensa diz de uma atividade profissional do jornalismo, regida por uma série de princípios, de fundamentos éticos deontológicos, mas também técnicos. Então, a liberdade de imprensa diz respeito à liberdade de o jornalismo ser exercido com ampla liberdade numa sociedade democrática. Existem diversas formas do fazer jornalístico, mas nem todo cidadão que está se expressando livremente exerce liberdade de imprensa. Todo jornalista ou toda jornalista que está se expressando e exercendo sua profissão — sem amarras, sem interferência do Estado e dentro dos preceitos das garantias constitucionais — está exercendo a liberdade de imprensa.
 
Já sabemos que a liberdade de expressão é garantida por lei. Contudo, até que ponto vai essa liberdade? Por que o discurso de ódio, por exemplo, não pode ser justificado por essa liberdade?
 
Tem uma frase de um filósofo político chamado Norberto Bobbio que diz que liberdade não é liberdade de fazer mal. Nenhum direito é absoluto, apesar de alguns serem fundamentais. Todos os direitos estão em relação uns com os outros, então, se a minha liberdade de expressão está sendo distorcida e deturpada ou se eu estou me utilizando de um pretenso direito à liberdade de expressão para fazer mal a outros sujeitos, eu não estou exercendo liberdade de expressão, estou fazendo mal. Estou cometendo violência. É o que a gente chama de violência simbólica, e isso não é liberdade de expressão. É um crime. Isso não é uma confusão, é uma deturpação, com método, feita por certos grupos que tentam se apropriar da esfera pública em nome de uma suposta liberdade de expressão para cometer crime de ódio, especialmente contra grupos que a gente chama de grupos subalternizados da sociedade — pessoas  negras, comunidade LGBT, mulheres, pessoas mais pobres e pessoas com deficiências —, que normalmente são os alvos desses ataques. 
 
Segundo pesquisa realizada no Brasil em 2017 pela Media Ownership Monitor (MOM), financiada pelo governo da Alemanha e realizada em conjunto com a ONG brasileira Intervozes e o Repórteres sem Fronteiras (RSF), dos 50 principais veículos em quatro segmentos (TV, rádio, mídia impressa e online), 26 são controlados por apenas cinco famílias. De que forma este cenário no qual os meios de comunicação se concentram nas mãos de poucos, chamado de oligopólio, é problemático e afeta a liberdade de imprensa?
 
Na verdade, afeta um direito ainda mais amplo: o direito à comunicação. É o direito que todo cidadão tem de se comunicar e não só de receber informações — que é o direito à informação —, mas também de produzir comunicação e se comunicar num ambiente livre, aberto e plural. Esse oligopólio brasileiro, que não é exclusivo do Brasil, mas aqui tem características específicas, está, obviamente, restringindo que tipo de informação as pessoas vão receber sobre quais lugares, quais atores sociais e quais grupos. Cada grupo tem, além dos seus princípios editoriais, interesses comerciais e ideológicos por trás. Quanto mais plural é o ambiente em que se produz jornalismo, você tem mais vozes falando e mais vozes participando, o que a gente chama de ecossistema midiático. Quando a gente fala desse sistema tão controlado no Brasil, não é uma liberdade de imprensa total. A maior pluralidade de vozes garante um ambiente mais livre, mais democrático, mais plural e em que mais histórias sejam contadas. Isso tudo contribui para um ambiente de maior liberdade informacional e de pluralidade também. 
 
A partir do momento em que temos uma imprensa concentrada nas mãos de poucos, qual a importância e as problemáticas da mídia alternativa?
 
A empresa dita alternativa tem um papel absolutamente fundamental. Primeiro para cobrir sujeitos, pautas e territórios que simplesmente não são atendidos pela grande imprensa. Ela traz à tona problemas de realidades locais muito restritas ou pequenas, cujos problemas não viram notícia. Aquela música "a dor da gente não sai no jornal" (Notícia de Jornal - Chico Buarque ) diz muito sobre isso. Outro grande ganho que a gente tem com o fortalecimento dessa imprensa alternativa é de, muitas vezes, apresentar à grande imprensa demandas de investigações. Como ela não tem tantas amarras políticas ou ideológicas ou os lastros comerciais das empresas tradicionais, muitas vezes tem liberdade para noticiar outros assuntos. Um caso recente no Brasil é o das denúncias de abuso contra Samuel Klein, fundador das Casas Bahia. É uma investigação descoberta pela Agência Pública, uma agência de jornalismo independente digital brasileira muito bem-sucedida. Havia um acordo de que essa investigação seria publicada com a Folha de São Paulo e na véspera da publicação a Folha desistiu de publicar. A Pública bancou sozinha essa publicação, que é um grande material de história absolutamente trágica e triste sobre como homens poderosos abusam sexualmente de mulheres e meninas no país. Como é um veículo com muita credibilidade, essa história foi rompendo um certo nicho de alcance da Pública até demandar de outros veículos, incluindo Folha, Globo, Estadão e outros. Se tornou insustentável não publicar. Então, a existência desses veículos tensiona o modo jornalístico tradicional. Com essas outras formas de se fazer jornalismo, o jornalismo volta a cumprir a sua função de informar os cidadãos para que eles possam tomar decisões e se movimentar no mundo. Diferente de algumas outras ocupações, o jornalismo é uma atividade que tem uma função pública primária. Não é à toa que no século 20 nós somos definidos como Quarto Poder. Nesses aspectos, o jornalismo independente tem papéis fundamentais no nosso cenário informacional e cobre também muitos casos que a gente tem chamado aqui no Brasil de "deserto de notícia". Tem uma pesquisa anual produzida pelo Atlas Notícia que tem mapeado iniciativas de jornalismo do Brasil e tem descoberto lugares no país onde não chega informação e não se produz informação. As pessoas que vivem nesses lugares não conseguem ter uma cobertura do executivo local, do legislativo, da saúde, da educação, da política. Isso é um deserto de notícias. Felizmente, o Atlas tem mostrado que os desertos estão diminuindo, ou seja, estão sendo preenchido com essas iniciativas normalmente locais e, em muitos casos, a mídia alternativa.
 
Anualmente, o RSF realiza um ranking que avalia a liberdade de imprensa nos países. Dentre os 180 países analisados, o Brasil ficou em 110º lugar neste ano. Além disso, de acordo com dados da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a censura foi considerada a principal forma de violência contra a liberdade de imprensa em 2021. O que esses dados revelam sobre o momento brasileiro atual?
 
Estamos vivendo no ambiente de um governo de extrema-direita que ataca diuturnamente o exercício do livre jornalismo, a liberdade de imprensa. É um ambiente perigoso como há muito tempo não é. Há uma permanente ameaça de violência física — em alguns casos os repórteres têm sido agredidos. Além disso, tem uma constante violência simbólica, especialmente sobre jornalistas mulheres. Elas são alvos de ataques na internet, têm a reputação atacada, são alvos de ataques pelos governantes, por parlamentares. Há uma rede de desinformação e de ódio muito grande em torno delas. A Patrícia Campos Melo relata em seu livro "Máquina do ódio" o número de ataques que sofreu, como produção de vídeos pornográficos utilizando imagens fake do rosto dela — que o filho dela assistiu. Então, é um ambiente muito deteriorado. A gente também não pode achar que antes o Brasil era um país pacificado, nunca foi. Mas essa queda brusca tem um diferencial. É a primeira vez em muitos anos desde a ditadura que o próprio estado ou governo, num aparato de Estado, é utilizado para cometer essas violências e para cercear a liberdade de imprensa. Não são ataques esparsos, o próprio Estado é um dos atacantes. Essas palavras de ódio incitam violência, legitimam violências. Uma coisa que a gente precisa entender numa sociedade democrática não violenta é que eu posso discordar da imprensa, posso questionar a cobertura e devo questionar os fundamentos daquela cobertura; mas quem faz aquela cobertura deve ser livre para continuar exercendo sua atividade, porque aquilo ali é um trabalho. As pessoas estão na rua trabalhando, não é uma pessoa sozinha que produz a linha editorial ou ideológica de um veículo. 
 
A liberdade de imprensa é importante para o exercício da democracia. Afinal, é por meio da imprensa que a população tem acesso aos acontecimentos do país e, assim, pode debater os diversos pontos de vista e formar opinião. Quais os possíveis caminhos que o Brasil precisa trilhar para conseguir democratizar a informação?
 
Em primeiro lugar, a gente precisa fortalecer a comunicação pública entendendo-a como uma ferramenta de Estado, e não de governo. Talvez criando uma série de salvaguardas e garantias às ferramentas públicas de comunicação e fortalecendo as que não existem em níveis municipais e estaduais. Precisamos de mais transparência dos entes públicos e precisamos dizer que este ano a Lei de Acesso à Informação (LAI) está completando 10 anos. É uma conquista do Jornalismo e de uma sociedade democrática, mas a LAI está sob grande ataque, especialmente porque outras legislações têm sido usadas como um subterfúgio errado para negar o acesso à informação. Além disso, nós precisamos de um ecossistema midiático mais amplo. Como que a gente consegue isso se a publicidade e os meios de financiamento estão concentrados? Nós precisamos encontrar coletivamente novas formas de financiamento para a imprensa. Historicamente, as grandes redes ficavam com o grosso da publicidade, principalmente TV, depois impresso, depois rádio. Com a internet isso está se transformando radicalmente e muito rápido. Hoje, o grosso da publicidade já está na internet, só que, ao contrário do ambiente antigo, a maior fatia do bolo não vai mais para as empresas, vai para as plataformas, como Facebook, Twitter e Instagram. Nesse ambiente há um número de verbas publicitárias cada vez menor para um número de veículos maior. Ou seja, a publicidade, que sempre foi um lugar muito cômodo de receita para os grandes conglomerados, não é mais a fonte de receita para ninguém. Então, a gente está no momento em que precisa repensar as fontes de financiamento, porque não tem dinheiro para todo mundo dentro das fontes tradicionais, que é a publicidade. Quais são as outras fontes? Doações, campanhas de financiamento coletivo, assinaturas e investimento por parte de fundações. A gente precisa romper um pouco com essa cultura de que toda informação é gratuita e deve ser gratuita, no sentido de que alguém precisa ser remunerado por esse trabalho. Como vou remunerar esse trabalhador se eu não contribuo com o ambiente da informação? Eu não estou dizendo que informação deve ser cara ou inacessível, muito pelo contrário. Mas a gente precisa entender que existem profissionais ali que estão produzindo informações e precisam ser pagos, precisam de um salário digno. O jornalista é, sobretudo, um trabalhador que produz um bem valioso para uma sociedade democrática.
 
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.
 
Confira todas as entrevistas publicadas.  

 

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