Reflexo de políticas públicas fragilizadas há décadas, as deficiências das escolas na maioria dos sistemas de ensino do país continuam a manter inalterado o formato organizativo do trabalho escolar. "Os currículos continuam uniformes e as escolas reféns das mesmas dinâmicas e diretrizes; as práticas permanecem mecânicas e desprovidas de significados para os atores principais: os alunos". Esta é uma afirmação da professora e ex-aluna do Departamento de Música Vivianne Aparecida Lopes, que, além de pesquisas na área da música, se dedica a observar como contextos de diferenciação curricular são explicitados nas aulas de canto no ensino superior.
Formada na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em 2008, com mestrado em Performance Musical e doutorado em Ciências da Educação pela Universidade Católica Portuguesa - Porto (UCP/Porto), a pesquisadora mineira realizou estudos em Portugal trazendo recortes que compreendem os diversos níveis de desigualdades entre estudantes do país e permitem constatar o impacto tanto qualitativo como quantitativo do acesso a professores na percepção do aluno de graduação em Música.
Entrevistada do "Em Discussão" desta semana, Vivianne analisa, entre outras questões, a defasagem no ensino de Música no Brasil e em Portugal e os desafios enfrentados nesse âmbito.
Professora, a sua tese analisa a defasagem no ensino superior de Música em Portugal. Como a iniciativa de um novo estudo nessa mesma direção em nosso país contribui para a compreensão da realidade brasileira?
Diferentemente de Portugal, o Brasil é um país muito grande, por isso não foi possível percorrer instituições para coletar dados, entrevistar docentes e discentes. Então, [no Brasil] foquei nos cursos de bacharelado em Canto das universidades federais, diminuindo assim o recorte. Através de metodologia mista, assim como feito [na pesquisa realizada] em Portugal, pude fazer um questionário a ser preenchido por todos os alunos dentro desse recorte e conversar individualmente com alguns desses participantes. Mas a ênfase desse estudo [feito no Brasil] foi quantitativa, dada a dimensão do país. De toda forma, foi possível replicar o estudo através dessa metodologia e dei mais voz aos professores, dada a diversidade latente no país.
Foi muito interessante, pois aqui [no Brasil] varia muito de região para região. Por exemplo, temos uma realidade no Nordeste em que há um número expressivo de alunos que sentem uma coerência maior do currículo formal com a sua realidade, esse corpo de conhecimento é de fato o que busca e tem condições de aprender. Se formos para as regiões Sudeste e Sul, já vemos um número maior de participantes que trazem pontos de reflexão, como ajuste de repertório e de exercícios, sentindo a necessidade de um currículo mais adaptado ao seu perfil. Na região Norte, tive dificuldades de chegar nos alunos, não houve tantas participações. Mas nos contatos que tive também é possível perceber que há uma ênfase na ideia de que poderia haver um ajuste melhor ao currículo, mas ainda assim a experiência é boa, o professor é atencioso, procura saber e se adaptar à realidade do estudante. De modo geral, no nosso país, dada toda a diversidade de estilo e cultura, as percepções dependem de cada região, havendo exigências maiores ou menores de acordo com cada realidade.
Quais os principais desafios enfrentados pelos alunos brasileiros e portugueses no que diz respeito à defasagem curricular?
Em Portugal, tínhamos as dificuldades concentradas nesses dois eixos: os exercícios, chamados de "vocalize", os quais os professores escolhem para trabalhar as vozes dos alunos, e o tipo de repertório trabalhado. Esse processo é o que geralmente acontece nas aulas de canto. O professor escolhe os exercícios para aquecer a voz dos alunos e depois trabalha o repertório escolhido. Então, muitas vezes os alunos sentem que o repertório escolhido pelo professor é arbitrário e não se adapta à sua realidade. Essa falta de adaptação de vocalizes para os diferentes tipos de vozes, muito comum nos casos em que os professores aplicam os mesmos [repertórios] para todos os alunos, faz com que os alunos não sintam as suas necessidades atendidas.
Já no Brasil, dada a nossa riqueza e vastidão de movimentos culturais populares, os estilos mais midiáticos e que chegam mais às massas não chegam à universidade, forçando o aluno a estudar um repertório o qual não compõe seu passado musical. Sinto que no nosso país há um desajuste maior nesse sentido de repertório. Na cultura portuguesa, já estão acostumados ao repertório erudito, a dita música clássica. Os alunos entram nas instituições sabendo que estudarão o canto lírico e passarão por esse conteúdo. Já no Brasil, grande parte dos alunos entra no curso de canto querendo se especializar em músicas que compõem sua realidade musical. Assim, eles cantam uma área francesa, inglesa, alemã, mas nunca são apresentados à cultura brasileira. Acredito que a defasagem curricular vem muito nessa linha, no desajuste de repertório para o perfil vocal e background dos alunos, distanciando a realidade do aluno do currículo.
Você acha que essa falta de adaptação do currículo passa por questões e influências políticas?
Muitos teóricos da educação falam exatamente sobre as influências políticas nos currículos aplicados. Sabemos que é uma realidade. Acredito que a universidade é um espaço importante para se discutir esse tema. Tudo o que a gente estuda, seja dentro da universidade ou fora dela, tem sim alguma influência política. Mas é essa capacidade nossa de estudar, de seguir e buscar coisas novas, buscar novos conhecimentos, que vai fazer com que tenhamos discernimento para enxergar essas influências. E mesmo que a gente não consiga, pequeninos que somos, e que não possa transformar ainda a nível macrocurricular essa realidade, muitas vezes não temos como afetar esse currículo a nível governamental; mas a nível microcurricular, você, como professor, consegue lançar a sementinha ali no aluno para que ele pense de forma crítica sobre sua realidade, entenda que como aluno ele muitas vezes é levado a um caminho por aquele conteúdo que está sendo passado sem pensar de forma crítica. Acredito que isso é muito importante, um papel nosso como professor regular, seja na área do canto, seja em qualquer área.
Em sua pesquisa, você aponta que questões relacionadas à confiança do aluno, seja em si mesmo ou no professor, são bastante aparentes, ocasionando atritos entre ambos. Poderia comentar um pouco mais sobre essa observação e como acredita que esses conflitos podem ser suavizados?
Falando sobre a distância entre o currículo e a realidade do aluno, é impossível não se lembrar do autor Luís Queiroz, que defende o "decolonialismo", dando maior acesso em nosso país a um currículo menos eurocêntrico. Acredito que a questão está toda nesse sentido. Não somente nas universidades, até mesmo nas escolas básicas se prioriza muito a história europeia, mas por vezes o aluno nem mesmo sabe sobre a história do lugar onde nasceu e foi criado. Então, no canto, esse currículo pode ser considerado elitista, sim, e essa democratização do canto no país é uma realidade recente. Isso não significa que não seja importante ou interessante, mas especificamente o nosso repertório, que é tão rico musical e culturalmente, deve ser decolonizado para passarmos a valorizar mais o que é produzido aqui e contemplar mais nos cursos a relevância e riqueza do nosso país. Precisamos fazer isso, de fato, na prática, já que, apesar da discussão permear o nosso universo, ainda existem poucas ações práticas para mudar essa realidade.
Chama a atenção que alunos do primeiro período foram deixados de lado na pesquisa. Você cita que a falta de experiência de trabalho com o professor é um fator determinante para não participarem. Dada a maior proximidade desses alunos, em sua maioria, da educação básica, acredita que seria relevante pesquisar esse grupo separadamente?
Na verdade, essa escolha serviu para limitar o público a ser pesquisado, em especial no Brasil, dada a amplitude da população, principalmente para conseguir um resultado conciso. Essa opção se deu também porque a ênfase do meu estudo era ver o tempo que o professor já possuía com o aluno, no contexto de sala de aula, para ensinar esse conteúdo. O aluno do primeiro período ainda não teria essa experiência para falar sobre o currículo e se a metodologia estava funcionando ou não. Para eles, seria difícil determinar se os exercícios estão ajustados ao que tecnicamente podem fazer, se está fluindo e o porquê. Para essa temática de investigação, era importante o aluno ter um tempo maior com o professor, aprendendo aquele currículo no dia a dia, para ser capaz de perceber a funcionalidade prática do conteúdo.
Agora, é possível sim analisar futuramente um aluno que está entrando no curso de canto e aqueles que já estão finalizando, para que possam ser feitas outras análises e entender novas nuances desses currículos. É uma pesquisa que pode ser trabalhada também, mas acredito que seriam necessárias algumas mudanças na metodologia que utilizei.
Como você percebe os impactos da pandemia no ensino de Música?
Em termos de aula, não pude particularmente experienciar, já que atuei no canto coletivo. Consegui adaptar bem essas aulas para o formato remoto, foi possível pensar estratégias para colocar os alunos fazendo atividades vocais juntos, com a voz e com o corpo. Agora, analisando a vivência dos meus colegas em aulas individuais, o que pude acompanhar é que com certeza se sente uma defasagem muito grande. Ainda não temos softwares que permitam uma interação em tempo real. Por causa do delay, haveria uma dificuldade entre professores e alunos usando a tecnologia à disposição, para [o aluno] cantar acompanhando o professor no piano, por exemplo.
É fato que desde o começo da pandemia temos softwares mais avançados, mas, especificamente na área de música, foi muito difícil de maneira individual o canto ser trabalhado durante esse período. Vi muitos trabalhos bonitos serem feitos de canto coletivo, por exemplo, com grupos corais, mas sempre trabalhando com edição de vídeo, juntando todas as partes gravadas individualmente. Essa realidade síncrona praticamente não aconteceu do ponto de vista vocal, o que foi difícil tanto para os alunos quanto para os professores. Muitas universidades, inclusive, optaram por ficar sem aula de canto durante um tempo, mas ao fim da pandemia houve um retorno gradativo. Houve sim adaptações que geraram práticas e conteúdos muito ricos, alguns que com certeza não seriam possíveis na realidade presencial, mas, de modo geral, em relação ao currículo em si, com certeza ficaram muitas lacunas.
Acredito que disciplinas teóricas sejam mais fáceis de se ensinar nesse contexto, mas com a maioria das disciplinas considero que não era tão simples, especialmente porque era difícil ter certeza se o aluno estava na aula ou não. Então, tantos os professores quantos os alunos foram afetados negativamente por essa realidade. Curricularmente falando, essa geração que venceu os desafios da pandemia com certeza enfrentará lacunas, mas, de alguma forma, foi muito importante a união de força de todos os lados para que as aulas não parassem. Percebi também, em outros cenários, que a realidade é ainda mais preocupante, como na educação básica, onde a defasagem realmente parece ter afetado criticamente a qualidade da educação e aplicação dos currículos base.
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.