Os medicamentos de forma geral têm como função diagnosticar, prevenir e curar doenças, além de aliviar sintomas. Quando se trata de doenças psiquiátricas, no entanto, o uso de medicamentos ainda é estigmatizado, uma vez que muitas pessoas têm visões equivocadas sobre os transtornos mentais e seus tratamentos. Há discussões sobre a adequação dos psicofármacos, descrença quanto a sua eficácia e resistência na utilização.
De acordo com a professora da Escola de Farmácia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Renata Macedo do Nascimento, depois de realizado um plano de tratamento com medicação psiquiátrica, é necessário dedicar certo tempo para informar sobre a natureza do transtorno psicológico e sobre evidências de eficácia e possíveis efeitos dos medicamentos. "Esclarecer quaisquer dúvidas, além de fortalecer a relação com o paciente, é indispensável para a adesão ao tratamento, evitando interrupções precoces", destaca Renata.
A professora, integrante da Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM) e também do Projeto sobre Ansiedade e Depressão em Universitários (PADu), esclarece nesta edição do "Em Discussão" a atuação, os riscos e o uso racional dos medicamentos para tratamento de transtornos psiquiátricos.
Como agem no corpo os medicamentos para tratamentos psiquiátricos?
As substâncias psicoativas são aquelas que agem no sistema nervoso central, produzindo alterações de comportamento, humor e cognição. A decisão de utilizar ou não um psicofármaco depende antes de tudo do diagnóstico que o paciente apresenta e do histórico de saúde, incluindo idade, eventuais comorbidades e uso de outros medicamentos ou drogas.
Pensando em tratamentos para transtornos mentais, em quais circunstâncias os medicamentos são aliados e em quais são riscos?
A ocorrência da maioria dos problemas de saúde mental é determinada por um conjunto de fatores. O impacto de cada fator varia de problema para problema, e de pessoa para pessoa. Há três domínios principais que merecem consideração: o social, o psicológico e o biológico. É importante ressaltar que, na prática, os fatores não se apresentam de forma isolada, mas interagem de forma dinâmica. O conhecimento desses fatores permite o desenvolvimento de estratégias e ações de prevenção e tratamento dos problemas de saúde mental.
Para muitos transtornos, os medicamentos são o tratamento preferencial — como a esquizofrenia, o transtorno bipolar e as depressões graves. Em outros, como as fobias específicas e transtornos de personalidade, as psicoterapias podem ser a primeira opção. Em muitas situações, a combinação de ambos os métodos (tratamento medicamentoso e psicoterapia) e a adoção de terapias alternativas e complementares podem ser a melhor forma de tratar as doenças psiquiátricas.
É importante destacar que, na saúde mental, o uso de medicamentos é essencial para possibilitar o tratamento em serviços abertos, substitutivos ao hospital psiquiátrico. Porém, esta é uma área na qual são frequentes a prescrição de muitos medicamentos (polifarmácia), a ocorrência de interações medicamentosas e de efeitos adversos, a não adesão ao tratamento e o uso abusivo dos medicamentos. Esses fatores podem comprometer a segurança do paciente.
Em abril, completamos 20 anos da Lei nº 10.216/2001, responsável pelo fechamento de manicômios e hospícios, que usavam fortes medicamentos nos tratamentos. Com isso, quais foram as mudanças ao longo desses anos no uso de remédios em tratamentos psiquiátricos?
A principal mudança ocorreu na forma de cuidado em saúde, com a alteração do foco na doença mental para o cuidado das "pessoas que sofrem". Adotar a perspectiva da pessoa como ponto de partida enriquece a compreensão do que motiva a procura por ajuda e, portanto, permite um cuidado que se adapta às peculiaridades de cada pessoa. No campo da saúde mental, um dos pilares de atuação é a chamada clínica ampliada. A clínica ampliada propõe que o profissional de saúde desenvolva a capacidade de ajudar as pessoas a não só combater as doenças, mas a transformarem-se, de forma que a doença, mesmo sendo um limite, não as impeçam de viver outras coisas em suas vidas.
Neste contexto, o medicamento é um insumo importante, que deve ser indicado a partir de uma criteriosa avaliação, feita por profissional de saúde devidamente habilitado. Além disso, o acompanhamento dessas pessoas por uma equipe multiprofissional, com participação de farmacêuticos, é fundamental para a identificação e resolução de problemas relacionados ao tratamento farmacológico.
Em meio à pandemia, notou-se um aumento nas vendas de remédios para depressão, ansiedade e insônia. Somente nos dois últimos meses de 2020, de acordo com o ePharma, houve um crescimento de 19,6%. O que esses dados representam para a discussão de saúde mental no Brasil?
Dados da literatura apontam que os transtornos mentais, especialmente a ansiedade e a depressão são muito prevalentes, sendo reconhecidos como problemas de saúde pública. Em momentos de crise, como a atual pandemia por Covid-19, podem afetar pessoas sem histórico de doença mental, bem como aquelas com doença mental grave, resultando em ansiedade, preocupação excessiva e insônia, dentre outros.
Desta forma, o aumento do uso de medicamentos para o manejo de transtornos mentais pode ser explicado pelas próprias características vividas nesta pandemia. Os altos índices de mortalidade e de casos confirmados da Covid-19 trouxeram consigo um cenário de incertezas, expondo a população ao estresse que, sabidamente, torna os indivíduos mais vulneráveis aos transtornos mentais, como ansiedade e depressão. Além disso, o longo distanciamento social, adotado como medida efetiva de enfrentamento à pandemia, pode resultar em efeitos psicológicos duradouros na população, pois há perda de rotinas diárias e contatos pessoais e sociais, provocando o aparecimento de emoções intensificadas, devidas ao medo de se contrair ou transmitir a Covid-19, além do luto pela morte de parentes ou amigos.
O aumento da prevalência das doenças mentais e, consequentemente, do uso de medicamentos psicotrópicos é um desafio a ser enfrentado durante e após a pandemia de Covid-19 e aponta a necessidade do fortalecimento da rede de atenção psicossocial, para garantir a atenção integral às pessoas com transtornos mentais, por meio de diferentes serviços e estratégias de organização do cuidado em saúde mental.
Existe um tabu com relação à utilização de medicamentos relacionados ao equilíbrio mental, que inclui o temor de uma dependência e o medo de ser estigmatizado. Como seria possível fazer uma abordagem adequada dessa questão?
A partir do diagnóstico, realizado por profissional habilitado, o primeiro passo é a escolha do tratamento, que deve considerar o perfil dos sintomas, a idade, a presença de problemas físicos, e o uso de outros medicamentos ou drogas com os quais o novo medicamento possa interagir. A partir dessa escolha, é necessária a elaboração de um plano de tratamento, em parceria com o paciente e, muitas vezes, também com familiares ou cuidadores, com o objetivo de tornar o paciente um agente ativo de seu tratamento. Neste processo, é importante a avaliação do letramento em saúde para identificar, além de questões relacionadas ao nível de escolaridade, as habilidades cognitivas e sociais que determinam a motivação e capacidade do paciente de obter, compreender e utilizar as informações para promover e manter sua própria saúde.
A maioria das pessoas têm dúvidas e receios em relação ao uso de medicamentos, especialmente se for por longo prazo. Ao esboçar o plano de tratamento, é importante dispor de algum tempo para dar informações sobre a natureza do transtorno, sobre o racional para o uso dos medicamentos, as evidências de sua eficácia, o que se espera com seu uso, o tempo necessário para se observar o efeito desejado, os possíveis efeitos adversos e as medidas que podem ser adotadas para reduzi-los. Esclarecer quaisquer dúvidas, além de fortalecer a relação com o paciente, é indispensável para a adesão ao tratamento, evitando interrupções precoces.
Em oposição ao medo da utilização de medicamentos, existem os casos de uso exacerbado de fármacos e de utilização sem recomendação médica. Nos tratamentos para transtornos mentais, de que maneira acontece a indicação para o uso desses medicamentos?
A indicação de uma terapia medicamentosa sempre deve considerar três questões principais:
1. O medicamento é necessário para o tratamento do transtorno mental diagnosticado?
2. O tratamento medicamentoso é efetivo, ou seja, gera o resultado esperado?
3. O medicamento é seguro? Os potenciais benefícios superam os riscos?
É importante ressaltar que o tratamento medicamentoso, quando efetuado de modo seguro e correto, tende a controlar e aliviar os sintomas dos transtornos mentais. Porém, é preciso evidenciar o seu uso indiscriminado e, muitas vezes, desnecessário. Por isso, os medicamentos psicotrópicos possuem regulamentação específica e controle especial para prescrição e comercialização no Brasil, por meio da Portaria n. 344/98 do Ministério da Saúde e suas atualizações. O objetivo é impedir o acesso indiscriminado a medicamentos que podem causar dependência, malformações fetais ou aumento do risco cardiovascular, entre outros efeitos associados ao uso indevido destas substâncias psicoativas.
Vale salientar ainda que a indústria farmacêutica investe mais em marketing do que em pesquisa e desenvolvimento. Para lidar com essa questão, os profissionais da saúde precisam estar atentos aos diversos aspectos relacionados à farmacoterapia do paciente, observando se de fato determinado medicamento está indicado, se é efetivo e seguro, e se há adesão ao tratamento. Elaborar diretrizes de desprescrição, ou seja, de suspensão do uso de medicamentos conforme critérios técnicos estabelecidos e considerando as características dos produtos, contribui para racionalizar o uso de psicofármacos, sendo uma importante estratégia para promover o uso seguro desses medicamentos. É importante destacar que alguns medicamentos, como os benzodiazepínicos (por exemplo, o clonazepam), não podem ser retirados de forma abrupta, devendo-se elaborar um plano de retirada gradual para prevenir sintomas de abstinência.
Quais são os caminhos possíveis para o uso racional de medicamentos no tratamento de e em prol da saúde mental?
O uso racional de medicamentos (URM) foi definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a situação em que os pacientes recebem medicamentos adequados às suas necessidades clínicas, em doses individualizadas, pelo período de tempo necessário e ao menor custo para eles e sua comunidade. Segundo dados da OMS, estima-se que mais da metade dos medicamentos são inadequadamente prescritos, dispensados e/ou vendidos, e que metade dos pacientes os utilizam de forma incorreta. No Brasil, segundo dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), a maior causa de intoxicações está relacionada aos medicamentos.
Para enfrentar este desafio, é fundamental que haja um cuidado multidisciplinar e que o foco seja o usuário do medicamento e não apenas o produto farmacêutico. Todos os profissionais de saúde devem conhecer e contribuir para a implantação do Protocolo Nacional de Segurança na Prescrição, Administração e Uso de Medicamentos nos estabelecimentos de saúde. Além disso, medicamentos em desuso devem ser devolvidos à farmácia para o descarte seguro, evitando-se acidentes domésticos ou uso sem indicação por profissional habilitado. A adoção de protocolos de tratamento, com base nas melhores evidências científicas, e o acompanhamento farmacoterapêutico são importantes estratégias para a promoção do uso racional de medicamentos. O farmacêutico é um profissional capacitado para acompanhar as pessoas, contribuindo para a educação em saúde dos pacientes e um cuidado integral em saúde.
SETEMBRO AMARELO - Desde 2014, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM), organiza nacionalmente o Setembro Amarelo, que se tornou o mês de prevenção ao suicídio. Desde então, a campanha cresceu e, neste período, a saúde mental passou a ser tema constante na imprensa. A UFOP busca manter projetos relacionados ao tema durante todo o ano, como o Abrace, grupo terapêutico aberto à comunidade da Universidade criado em 2019 que, desde a suspensão das atividades presenciais, passou a atender remotamente. Outras ações desenvolvidas pela comunidade são viabilizadas pelo Programa de Incentivo à Diversidade e Convivência (Pidic), iniciativa vinculada à Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (Prace) da UFOP que tem como objetivo implementar atividades de ações afirmativas na Universidade de forma articulada ao ensino, à pesquisa e à extensão, a fim de ampliar as condições de permanência de estudantes da graduação. A Prace também oferece apoio psicológico aos membros da comunidade acadêmica.
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.