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Progredir preservando: desenvolvimento urbano e patrimônio

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NPG
 
Planejar, no âmbito regional ou urbano, é uma atividade de organização das cidades e regiões que tem por objetivo melhorar aspectos sociais, econômicos, habitacionais e ambientais dos municípios, contribuindo para uma melhor qualidade de vida dos cidadãos. No Brasil, o planejamento urbano sofreu influências europeias, inicialmente, e evoluiu ao longo do tempo.
 
A Revolução Industrial está diretamente ligada ao processo de urbanização. Na Europa, atraiu moradores rurais para as cidades, e a população urbana se multiplicou após 1850. Aqui, esse êxodo ocorreu mais tarde, principalmente, a partir de meados do século XX.
 
Diante desse fenômeno, surgiu a necessidade de se pensar propostas que pudessem contribuir para a ordenação das cidades, principalmente porque em muitas delas não havia planejamento, organização e estrutura para receber tantas pessoas vindas do campo, com baixos salários, enquanto a terra continuou concentrada nas mãos de poucos. Então, diversos problemas começaram a surgir.
 
Garantir o desenvolvimento urbano pode parecer ainda mais complicado nas cidades ditas históricas, uma vez que nelas existem construções e áreas tombadas, onde são impostas restrições no âmbito de reformas, justamente pela necessidade de serem preservadas.
 
Para tratar deste tema, entre outros assuntos, o "Em Discussão" desta semana convidou a professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Flora Passos. Ela é graduada, mestre e doutora em Arquitetura e Urbanismo, respectivamente pela Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal Fluminense (com intercâmbio na Columbia University) e Universidade Federal de Minas Gerais. Além disso, chegou a atuar no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e na Unesco, com ações voltadas para a preservação do patrimônio cultural urbano.
 
Quando se fala em desenvolvimento urbano, o senso comum é relacionar o tema a infraestrutura, no sentido físico, de construções e obras, por exemplo. É por aí mesmo ou "desenvolvimento urbano" engloba outras questões?
 
Um espaço urbano ou cidade deve ser entendido enquanto produto social. Então, não por acaso, uma sociedade desigual produz uma cidade desigual. Nesse sentido, a leitura de um território não pode se restringir de maneira alguma apenas a elementos físicos construídos, pois inclui também aspectos sociais, econômicos, culturais, políticos, além de elementos naturais, entre outras dimensões de análise. Para além disso, acho que é importante a gente fazer uma ressalva com relação à própria ideia de desenvolvimento urbano, ao conceito de 'desenvolvimento'. Ele está atrelado a uma lógica de acumulação capitalista, então, não foi por acaso que os Estados Unidos implantaram esse discurso das áreas subdesenvolvidas, que deveriam buscar um 'desenvolvimento'. Muitas vezes, essa incessante busca por um estado de desenvolvimento acaba gerando e reforçando condições de desigualdade e exclusão. Então, que desenvolvimento é esse? É à custa de quê e à custa de quem? Acho que essas são perguntas importantes.
 
Municípios com população superior a 20 mil habitantes têm a obrigação de elaborar um plano diretor municipal, como é o caso das três cidades onde a UFOP possui campi. Qual a importância de um plano diretor para o planejamento urbano?
 
O plano diretor é o principal instrumento da gestão urbana. Mas apesar de definido como obrigatório para municípios com mais de 20 mil habitantes desde a Constituição Federal de 1988, a experiência nos mostrou que não basta a obrigação pela elaboração, é preciso garantir que essa elaboração aconteça a partir de um processo efetivamente participativo. O Estatuto da Cidade, que é a Lei Federal nº 10.257 de 2001, mostra que o processo e a forma de operacionalizar os planos diretores são questões-chave. Então, um plano diretor que não reflita as reais demandas da ampla maioria da população, principalmente da parcela que habita áreas periféricas e precarizadas nas cidades; que não inclua instrumentos urbanísticos que visam comprimento da função social do solo urbano; e que acabe apenas flexibilizando índices urbanísticos de uso e ocupação em benefício, muitas vezes, do setor privado, demonstra graves problemas relacionados ao seu processo de elaboração ou de revisão. E é importante explicar que, para além do plano diretor, existem uma série de outros planos, que são os planos setoriais, de fundamental importância, como o Plano Local de Habitação e Interesse Social (PLHIS). Em Ouro Preto, a gente sabe que moradia é uma questão urgente. Existem muitas famílias morando em situação de risco e, para além de ser necessária a destinação de terras adequadas — não apenas quanto a seus aspectos geofísicos, mas relacionados à localização e várias outras condições —, todas as políticas e programas de moradia precisam ser construídos e implementados em conjunto com a população. É preciso escutar, criar mecanismos de fortalecimento dos movimentos sociais organizados que lutam por moradia em nível local. Enfim, além da habitação, existem outros temas de interesse social que também podem receber planos setoriais, a exemplo da mobilidade urbana, do saneamento básico e da preservação do patrimônio cultural.
 
Há 16 anos (2007), o Brasil lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), promovendo planejamento e execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética. Você participou, em Mariana, da fiscalização de obras de restauração e outras atividades relacionadas ao PAC Cidades Históricas (2013), voltadas para cidades protegidas pelo Iphan. Qual é o panorama atual de Ouro Preto e Mariana? Como você avalia o nível de desenvolvimento?
 
Primeiro, acho importante destacar que, tanto em Mariana como em Ouro Preto, as ações do PAC Cidades Históricas priorizaram obras de restauração em bens tombados isoladamente pelo Iphan, que, em sua maioria, são templos religiosos católicos, representativos da arquitetura do período colonial. Bens que foram identificados lá no fim da década de 1930 como representativos da identidade nacional. E esses bens não deveriam estar num estado de tanta degradação e deterioração. Ou seja, eles deveriam receber, da proprietária, manutenção e conservação preventiva, para não demandar obras de grande porte e, assim, não ter que aguardar sempre esses grandes investimentos a partir de programas federais. Mas, respondendo essa pergunta mais diretamente, com relação às ações previstas em 2013 no PAC Cidades Históricas, poucas foram concluídas e algumas seguem em andamento. O programa segue em curso e, sem dúvida, as instabilidades do Governo Federal desde o golpe de 2016 impactaram as obras. Por isso, eu acho importante pontuar que, para além de programas federais, a gente precisa de programas e políticas, de preservação patrimonial nas nossas cidades em nível local, que fortaleçam a intersetorialidade e a inclusão social, e que inclusive reavaliem quais são as prioridades de investimentos de recursos públicos. Afinal, que bens são esses que recebem recursos públicos? Muitas ações em Mariana acabaram sendo implementadas por outros meios — foram previstas inicialmente dentro do PAC mas captaram recursos de outras formas, muito a partir de um esforço conjunto de vários atores, em especial do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (Compat), em que há representação da sociedade civil nas decisões.
 
Como o patrimônio cultural é envolvido em projetos de desenvolvimento urbano? Também devemos levar em consideração o patrimônio imaterial?
 
Importante questão! Apesar de existir um certo entendimento generalizado do patrimônio como algo associado a deveres e obrigações, que é muito devido à prática de fiscalização e controle de intervenções em conjuntos urbanos tombados, — o que a gente percebe  na própria construção dos discursos entre moradores — a preservação patrimonial é um direito coletivo. Ou seja, a gente defende que o Patrimônio seja entendido dentro de um feixe de direitos urbanísticos. A Maria Cristina Simão, professora e pesquisadora do curso de Conservação e Restauro do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), desenvolveu sua tese nesse sentido, a partir de um estudo de Ouro Preto. Contudo, é importante destacar que caminhar para o entendimento do direito ao patrimônio como um dos aspectos do direito à cidade, implica ampliar a própria ideia de patrimônio, que, apesar dos avanços legais, ainda está muito atrelada à materialidade e à monumentalidade. Então, apesar da legislação e das práticas institucionais de preservação patrimonial estarem divididas assim nessas 'caixinhas' do patrimônio imaterial registrado e do patrimônio material tombado, essas duas dimensões são indissociáveis. Assim, um bem edificado ou um conjunto urbano só tem valor simbólico e histórico porque sujeitos atribuem a ele significados, atribuem valor.
 
Parece que até cidades planejadas, como Belo Horizonte e Mariana (trazendo para um contexto mais próximo), sofreram com o crescimento desordenado em algum ponto da história e hoje enfrentam os mesmos problemas de cidades que surgiram de aglomerações irregulares, mesmo que talvez em diferentes escalas. É possível organizar um espaço urbano que cresceu de forma desordenada?
 
Na verdade, eu diria que Mariana e Belo Horizonte receberam desenhos, ou melhor, traçados urbanos implantados com objetivos diferentes e em momentos diferentes. Mariana, em meados do século XVIII, e Belo Horizonte, no fim do século XIX. Mas, em comum, há a importação de modelos eurocêntricos nesses traçados ortogonais. De toda forma, assim como qualquer outra cidade, elas não estão congeladas no tempo. Elas estão em constante transformação — entendendo 'cidade' enquanto produto social. Então é importante dizer que essa dita "desordem" nas cidades brasileiras não é fruto da falta de leis ou planos. Tem uma professora e pesquisadora chamada Erminia Maricato que não cansa de dizer isso: "Não é por falta de leis e planos que as cidades brasileiras estão como estão". O grande problema é que as leis e os planos têm sido aplicados apenas quando favorecem os grupos dominantes —  grandes proprietários de terra, construtoras, mineradoras. E esse benefício de uns poucos privilegiados significa a precarização e pauperização de muitos que são excluídos dessa cidade "formal".
 
A acessibilidade, por exemplo, é algo fundamental para a inclusão de todos os cidadãos. Considerando que nas cidades históricas existem muitas construções tombadas, ruas estreitas e calçamentos de pedra, como garantir a acessibilidade nesses locais? Existem limitações? Existem problemas que são insuperáveis?
 
Garantir a acessibilidade universal em conjuntos urbanos patrimonializados é, sem dúvida, um grande desafio. A própria topografia da cidade é um aspecto limitador. O Iphan, que é o órgão federal de preservação, tem buscado publicar orientações para incentivar a acessibilidade em edificações e conjuntos urbanos tombados, mas é necessário tratar do assunto na prática. Acredito que é fundamental e urgente se aprofundar em pesquisas no sentido de avaliar as condições, fomentar políticas e práticas para acessibilidade e caminhabilidade. Aqui mesmo na UFOP, no curso de Engenharia Urbana, tem pesquisadores que estudam índices para avaliar a caminhabilidade em centros históricos. Então, acho que o caminho é sempre a gente estudar possibilidades e identificar casos específicos. Muitas vezes é difícil generalizar soluções porque cada cidade é uma cidade, cada bairro tem suas especificidades. Mas eu acho que é um tema urgente de ser tratado enquanto política pública, sem dúvida.
 
Então, "tombado" não significa que o local ou monumento seja intocável?
 
Não é [por ser tombado] que não pode fazer intervenções, mas, antes de executar uma reforma, por exemplo, é necessário passar por uma autorização prévia do Iphan. Então, muitas vezes, a gente acha que não pode, mas pode. Inclusive, deve. Se é um imóvel com uma função social, com uso público, é necessário que se tenha acessibilidade. Mas aí tem que encaminhar uma proposta, um projeto. É sempre uma análise caso a caso. Dependendo da edificação, qual é a solução? É uma plataforma elevatória? É uma rampa? Que tipo de elementos, como o piso tátil, deve ser colocado num piso em pedra, por exemplo? É sempre possível executar intervenções, mas é um trabalho que tem que ser feito a partir de estudos, embasado a partir de teorias e experiências práticas.
 
Como conciliar o desenvolvimento urbano com a preservação do patrimônio? Quais são os principais desafios, considerando que muitos monumentos e construções tombados requerem preservação?
 
Eu acho que a gente precisa partir do pressuposto da preservação patrimonial não como um obstáculo ou um limitador, mas como uma parte fundamental para o planejamento das cidades. Existem diversas ferramentas no campo do planejamento urbano que não apenas contribuem na preservação das referências culturais, que são suporte de memória dos moradores de uma cidade, mas que fomentam o cumprimento da função social do patrimônio. E eu não me refiro só à preservação do casario, que integra essa área de proteção mais intensa, por exemplo. O que aqui em Ouro Preto a gente chama de 'Centro Histórico', sem dúvida, teria sim que receber mais investimentos, mais ações para evitar, por exemplo, um processo de especulação imobiliária, de gentrificação — de expulsão dos moradores locais por conta do alto valor do imóvel. Mas eu me refiro também a uma urgência de voltarmos a atenção aos patrimônios culturais invisibilizados, como os encontrados nos bairros da Serra de Ouro Preto: São Cristóvão, Veloso, São Sebastião, São João, Taquaral, enfim, têm vários bairros ali. Muitas vezes os investimentos, as ações, as políticas públicas relacionadas a patrimônio ficam muito restritas ao dito 'Centro Histórico', que acaba sendo muito voltado para o turista. Então, acho que a gente tem que pensar 'patrimônio urbano' de uma forma mais ampliada, entendendo essa cidade como um todo, incluindo as áreas periféricas, os distritos, subdistritos, localidades rurais, que também acabam sendo mais invisibilizados por estarem mais distantes. Em resumo, eu defendo o patrimônio cultural, inclusive as suas formas de institucionalidade, como instrumentos de resistência ao avanço da mercantilização das cidades. E por isso é importante pensarmos o patrimônio cultural no campo do direito à cidade.
 
 
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.
 
Confira todas as entrevistas já publicadas.
 
 

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