Ir para o conteúdo

A questão agrária e a produção de alimentos

Twitter icon
Facebook icon
Google icon

1_1.png

NPG
 
Muitos brasileiros estão cada vez mais preocupados com a qualidade e a procedência dos alimentos que consomem, principalmente por causa do crescimento do uso indiscriminado de agrotóxicos nos últimos anos. Atualmente, o Brasil está entre os países que mais utilizam agrotóxicos na agricultura. 
 
Diante disso, muitos consumidores têm buscado alimentos orgânicos, agroecológicos, de pequenos produtores e da agricultura familiar. Em momentos como este, a questão da reforma agrária ganha mais importância e passa a ser tema de debates com maior frequência. A maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento já realizou a sua reforma agrária, o que levou muitos deles à redução das desigualdades, melhor distribuição de terra e, consequentemente, ampliação da produção de pequenos produtores.
 
Nesta edição do Em Discussão, o professor Rafael Santiago Mendes, do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto (Desso/UFOP), aborda a questão agrária, a produção orgânica e as desigualdades existentes no campo. O entrevistado é graduado em Serviço Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e mestre na mesma área pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente cursa o doutorado em Geografia na Ufes.
 
Professor, de acordo com o Censo Agro de 2017, a agricultura familiar é responsável por 77% das unidades agrícolas doa Brasil. Porém, quando se avaliada a dimensão do território, essa lógica se inverte, pois a área pertencente aos agricultores familiares corresponde a apenas 23% das terras agricultáveis do país. Na sua opinião, quais seriam os principais fatores que impedem a expansão da agricultura familiar?
 
A agricultura familiar é responsável, em média, por 75% da alimentação brasileira, mesmo tendo apenas 23% das terras agricultáveis. A questão mercadológica é a concorrência, pois o agronegócio possui cerca de seis megacorporações no mundo. Essas empresas estão na bolsa de valores, possuem navios enormes, que estocam grãos para segurar e forçar o aumento do preço na bolsa. É uma competição extremamente desigual para a agricultura familiar! No Brasil, [a agricultura familiar] em sua grande maioria se sustenta devido aos incentivos à produção ou comercialização feitos através do Estado. Mesmo pegando exemplos de governos como Lula e Dilma, que foram os com maior investimento na agricultura familiar, os investimentos no agronegócio foram muito maiores. Sendo assim, [os agricultores familiares] são impossibilitados de crescer, já que o livre mercado não proporciona condições iguais a todos.
 
Historicamente, o Brasil foi se consolidando como um dos maiores utilizadores de agrotóxicos. Quais os impactos desse uso indiscriminado para os brasileiros?
 
Os impactos são variados e totalmente degradantes. Os agrotóxicos são tecnologias oriundas da guerra. Na Guerra do Vietnã, por exemplo, os Estados Unidos usaram o agente laranja para o ataque. Essa arma química era pulverizada em cima das copas de árvores para atingir os vietnamitas. Atualmente esse é um dos agrotóxicos que usamos em plantações e também para limpeza urbana. Os agrotóxicos trazem sérias consequências para a saúde humana e animal, além de provocar a poluição dos lençóis freáticos. E existe ainda outra problemática, porque às vezes temos uma propriedade de produção agroecológica orgânica, mas o próprio vento pode levar o agrotóxico para essa produção. Existem várias doenças, alguns cânceres e até suicídios que são associados ao uso de agrotóxicos no campo, visto que a utilização indiscriminada sem uso de aparelho de segurança acaba trazendo transtornos mentais. Inclusive, o Brasil e a Índia, que são grandes produtores agrícolas e usuários de muitos agrotóxicos, têm índices extremamente altos de suicídio no campo, o que é pouco divulgado. Na Universidade Federal do Mato Grosso, fizeram uma pesquisa com o leite materno e todas as amostras tinham pelo menos dois tipos de agrotóxicos e 80% das amostras tinham mais de seis agrotóxicos. Em termos agronômicos, o agrotóxico também é mais um fator para o endividamento do homem do campo. São problemas com fungos, insetos e animais que demandam cada vez mais o uso de agrotóxicos, o que gera uma sequência de dívidas e degradação ambiental muitas vezes irreparável. Por isso a produção agroecológica é sustentável financeira e ecologicamente. A autonomia ecológica traz também uma autonomia financeira para o agricultor, enquanto o sistema do agronegócio gera essa dependência do agrotóxico. 
 
Por outro lado, segundo pesquisa do Euromonitor, o Brasil é o 4º consumidor mundial de alimentos orgânicos. Podemos considerar que esse crescimento do uso indiscriminado de agrotóxicos no país levou a uma maior procura pelos orgânicos?
 
Somos um grande consumidor de agrotóxicos, em contrapartida existe uma grande busca por alimentos orgânicos, por isso é um mercado que está em alta em nosso país. É um mecanismo também de distinção social entre classes. Para além da saúde, existe uma questão de status entre a classe média, que acha legal consumir os produtos orgânicos. 
 
Qual o perfil dos alimentos consumidos em nosso dia a dia? Nós consumimos mais produtos de produtores locais ou de produção em grande escala?
 
Aqui em Ouro Preto consumimos muito a produção local! O problema é não existir uma distinção nos estabelecimentos do que são alimentos oriundos da agricultura familiar local e quais são de grandes produtores. Existe também a questão da logística, que é extremamente irracional. Em conversa com um produtor de batatas, ele me disse que vendia produtos para uma atravessadora da Ceasa, que revendia para a região metropolitana de Belo Horizonte e algumas vezes a batata retornava para o sacolão em Ouro Preto. Vemos uma conta negativa energeticamente falando, é um gasto desnecessário e que acaba impactando nos custos para ambos os lados. O consumidor acaba pagando mais e o agricultor poderia receber mais por sua produção caso a venda fosse realizada diretamente. Então é difícil saber o perfil dos alimentos consumidos. Consumimos muita produção local mesmo sem saber. Alguns restaurantes compram apenas de produtores locais. Os próprios alimentos que vêm da Ceasa, em grande parte, também são da agricultura familiar, mesmo não sendo locais. As grandes corporações do agronegócio fornecem basicamente grãos, como soja e milho. 
 
Qual a avaliação que você faz a respeito das centrais de abastecimento? Elas são um recurso de apoio à agricultura familiar ou são mais benéficas às grandes corporações agrícolas?
 
Acredito que deveriam existir centrais de abastecimento mais locais, não uma para todo o estado. Quem perde são os pequenos agricultores e também os consumidores, enquanto as grandes corporações acabam se sobressaindo por conta da grande produção, detenção de caminhões,  boa logística, boas tecnologias para grandes produções, grandes colheitas e grandes escoamentos. As grandes corporações têm muitos recursos, enquanto para os pequenos agricultores a Ceasa acaba sendo o único possível. O grande problema, falando de Ouro Preto especificamente, é a dificuldade do escoamento da produção agroecológica local. Piedade de Santa Rita é um local que tem produção agroecológica, vende produtos para a capital inclusive, e fica a aproximadamente 40km da Praça Tiradentes, sendo boa parte do acesso por estrada de chão. Ao chover, apenas veículos específicos conseguem levar a produção ao consumidor, sendo este o grande entrave para a produção local.
 
Na sua opinião, quais são os maiores entraves à realização de uma reforma agrária no país?
 
A reforma agrária é uma pauta liberal, e não comunista, ao contrário do que muitos pensam. Todos os países que fizeram uma revolução burguesa fizeram a reforma agrária. Desde o início de nossa história se estabeleceram grandes Capitanias e os senhores tinham grandes pedaços de terra. Além disso, a abolição da escravatura aconteceu no mesmo momento da Lei de Terras no Brasil, impossibilitando o acesso à terra por ex-escravizados, e assim foi instituído o trabalho assalariado. Também houve o processo de imigração italiana e alemã no Brasil, principalmente para as plantações de café de São Paulo e do Espírito Santo, onde aconteceu o sistema dos colonatos; então o próprio mercado de trabalho brasileiro nasce racializado. Nosso país sempre foi um país de commodities, com o pau-brasil, cana de açúcar, mineração, e até hoje somos um grande exportador de commodities, produzidas em sua maioria por grandes latifúndios. Consequentemente, a bancada ruralista agrega muita força em nível local e nacional. Em um país onde o agronegócio tem tanta força, política e economicamente, é difícil acontecer uma reforma agrária, além de ser necessário pensar também que tipo de reforma seria ideal para o Brasil.
 
Como a agricultura familiar pode ser considerada sustentável? Em que sentido podemos dizer que é agroecológica?
 
Por conta das proporções da terra, a agricultura familiar que utiliza de agrotóxicos ainda é mais sustentável em termos ambientais do que o agronegócio. Geralmente a agricultura familiar trabalha com diversificação de unidades agrícolas, em contraposição ao agronegócio, que normalmente atua com monoculturas que trazem problemas ecológicos com o alto índice de agrotóxicos. A produção orgânica não utiliza componentes químicos, mas não necessariamente é uma produção sustentável. Por exemplo, é possível comprar um insumo orgânico que está a mil quilômetros de distância, gerando toda a poluição durante o transporte. Já a agroecologia é um movimento social latino-americano que tem como princípio a produção local, com insumos locais, tendo baixo gasto energético. Em termos agronômicos, a agroecologia é totalmente sustentável, é o caminho para a sustentabilidade do campo. Hoje existe o Núcleo de Estudos em Agroecologia (NEA), para quem quiser saber mais sobre a agroecologia e movimentos agroecológicos da nossa região. Temos agricultores da região que já são ou estão em transição agroecológica, e promovemos também uma série de cursos e debates sobre o tema. É a nossa proposta, é a nossa bandeira de agricultura para o Brasil e para o mundo.
 
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.
 
Confira todas as entrevistas já publicadas.
 

 

Veja também

14 Dezembro 2023

destaque_2.jpg Em 2015, entrou em vigor a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência,...

Leia mais

6 Dezembro 2023

destaque_.jpg A Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep) é uma iniciativa nacional dirigida às escolas públicas e privadas...

Leia mais

22 Novembro 2023

destaque_1.jpg Toda universidade, seja ela pública ou privada, necessita de instituições parceiras e de apoio para fomentar a expansão da...

Leia mais

30 Outubro 2023

destaque_.jpg NPG A internet, os celulares e os computadores têm se tornado cada vez mais presentes nas interações sociais e,...

Leia mais