Criado por Samuel Almeida em qua, 23/08/2023 - 16:33 | Editado por Lígia Souza há 1 ano.
O ato de refletir sobre determinada prática é um modo de fazer com que ela esteja em constante evolução e acompanhe as mudanças do mundo. Ao olharmos para o passado, é possível notar diferenças em diversos aspectos de nossas vidas: nos costumes do dia a dia, nas profissões, nos comportamentos.
Em uma sala de aula, a forma de ensinar de 50 anos atrás, por exemplo, é bem diferente do que a dos dias de hoje, seja pela tecnologia, mentalidade ou perfil de estudantes e professores. Para evitar a estagnação, é necessário que profissionais — neste caso, os professores — sigam aperfeiçoando seus conhecimentos para se adequarem às demandas dos novos tempos.
Há 10 anos, com o propósito de fomentar discussões e reflexões sobre os desafios da docência universitária, surgiu na UFOP o Programa Sala Aberta: Docência no Ensino Superior. O programa busca garantir que as práticas educativas sejam constantemente discutidas e reformuladas por meio do debate entre docentes.
Para tratar deste tema, a convidada do Em Discussão desta semana é a técnica em Assuntos Educacionais do Núcleo de Apoio Pedagógico da UFOP Juliana Santos da Conceição. Ela é doutora e mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e UFOP, respectivamente, e graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Viçosa. Tem experiência principalmente em ensino-aprendizagem, formação de professores, saberes docentes, docência universitária e ensino superior.
Qual a importância da formação continuada para além dos títulos de pós-graduação?
Na atual legislação brasileira não há obrigatoriedade de formação específica para ser professor na Educação Superior, de forma geral. É exigido apenas ter uma graduação e, no caso das universidades públicas, ter pós-graduação (mestrado e doutorado). A maioria dos docentes que atuam nas universidades tem uma formação de excelência, porém, na maioria dos casos, não tiveram a oportunidade de discutir, durante sua trajetória acadêmica, temas relacionados ao fazer docente e à atuação em sala de aula. Assim, a criação de espaços de formação, no âmbito institucional, é a oportunidade que temos para que os professores tenham contato com discussões ligadas à docência universitária, que se difere de ser docente na Educação Básica, por exemplo. Pensar a docência na universidade é pensar no tripé ensino, pesquisa e extensão, além da gestão. Articular essas responsabilidades é um desafio que precisa ser debatido ao longo da carreira do professor, pois o conhecimento é dinâmico e os desafios mudam a todo instante.
Você acredita que a exigência de uma formação em docência deveria ser requisito para professores da Educação Superior? Quais seriam os pontos positivos e negativos de uma medida como esta?
Acredito que, para discutir uma política de formação específica para os professores que irão atuar na Educação Superior, precisamos pensar inicialmente em uma mudança da estrutura da universidade. Partindo da concepção de campo de Bourdieu, podemos dizer que na estrutura atual das universidades brasileiras, especialmente das instituições públicas, o capital científico é que ocupa um lugar de destaque e de poder. É o acúmulo desse tipo de capital que promove, hoje, a ascensão na carreira e o prestígio acadêmico no interior do campo universitário. Porém, é preciso destacar que, no Brasil, antes da reforma universitária de 1968, a pesquisa era uma atividade quase inexistente e ocupava um lugar secundário nas universidades. Após tal reforma, seguindo fortes influências de universidades americanas, a pesquisa passou a ser um dos elementos indissociáveis do tripé da universidade (ensino, pesquisa e extensão), e se tornou a principal responsável pela aquisição e acumulação do capital científico. Na minha pesquisa de doutorado, defendo a existência de um outro capital no campo universitário, que chamei de “capital pedagógico”. Esse capital estaria envolvido nas questões relacionadas à docência, ao valor dado às atividades ligadas ao ensino. No campo universitário brasileiro atual, no processo de seleção de professores, a prova didática tem menor valor em comparação às publicações e à titulação dos candidatos. Após ingressar na carreira, as atividades didáticas contam pouco para a progressão e/ou para a promoção, assim como a avaliação que os discentes fazem dos professores, que não é sequer considerada nesses processos, e é contabilizada apenas durante o período de estágio probatório. Ou seja, só poderemos exigir uma formação em docência para ingresso na educação superior se houver uma mudança em relação ao que é valorizado atualmente no campo universitário.
Considerando esse cenário, acredito que a criação de uma política nacional de formação, pensada para a docência universitária, e que disponha de verbas específicas para que as instituições possam financiar seus programas de formação, seria a melhor estratégia. Além disso, a participação dos professores nessas ações formativas deveria ser valorizada para a progressão na carreira, assim como hoje são valorizadas as atividades de pesquisa. Tal valorização visa alcançar um maior equilíbrio entre o valor atribuído às atividades de ensino, de pesquisa e de extensão dentro das universidades, para que o investimento em atividades ligadas ao ensino e à docência universitária encontre um espaço mais profícuo. Assim, possibilitaria um equilíbrio maior na carreira do professor, ao direcionar seu trabalho à área que tenha mais afinidade e não apenas ao que é exigido pelos agentes que dominam, atualmente, esse campo.
Como a formação continuada ajuda o trabalho dos professores dentro e fora da sala de aula? (por exemplo, na relação com estudantes, no uso de novas tecnologias, nos métodos de ensino).
Considerando que a maioria dos professores não teve a oportunidade de discutir sobre temas relacionados à docência em suas formações específicas, as iniciativas institucionais de formação continuada contribuem para a criação de um espaço de diálogo e troca de experiências entre os docentes participantes, pois o desenvolvimento profissional docente se faz no cotidiano e na troca de saberes entre os pares e na constante reflexão sobre a prática. Esses saberes estão relacionados a estudos sobre aspectos pedagógicos e ao processo de ensino e aprendizagem.
Que iniciativas foram promovidas na UFOP visando à formação continuada e à oferta de cursos para docentes antes do Sala Aberta?
Antes da implementação do Programa Sala Aberta, desde a década de 1990, a UFOP realizava ações relacionadas à formação docente. Eram atividades promovidas pelo Núcleo de Apoio Pedagógico, órgão criado em 1995, antes mesmo da criação da Prograd. À época, professores e técnicos administrativos em Educação de diferentes áreas e setores, sensíveis às reflexões sobre a temática da formação de professores, iniciaram uma mobilização na perspectiva de refletir sobre a docência universitária na UFOP. Vale destacar o nome da professora Maria Magdalena Lana Gastelois, uma das idealizadoras da ação de formação ocorrida nos anos de 1990 que envolveu um número significativo de professores participantes. Outras duas ações que também merecem destaque são o encontro de formação continuada "Cara a cara no Caraça", realizado na Serra do Caraça, em 1996; e o encontro "Docência no Ensino Superior", que aconteceu no Hotel Fazenda Retiro das Rosas, em 2008. Nessa época, o número de professores da UFOP era bem menor, o que possibilitou a realização de atividades fora do campus universitário. Com a ampliação da equipe do Núcleo de Apoio Pedagógico, as ações de apoio docente foram se tornando mais frequentes, mas não havia um programa sistematizado, regulamentado, voltado para formação docente.
Quais foram então os motivos que levaram à criação do Sala Aberta? Quais as diferenças entre a proposta do Sala Aberta e o que era feito antes?
O Programa Sala Aberta surgiu logo após a grande expansão das universidades federais brasileiras, com a implantação do Reuni, ocorrida no final de 2008. Nessa época, a Universidade Federal de Ouro Preto experimentou uma expressiva expansão das matrículas na graduação e, em consequência, do número de docentes em exercício na Universidade —em 2007, eram cerca de 400, e passou para quase 800 professores em 2013. Na minha pesquisa de mestrado, identifiquei que grande parte desses professores assumia a docência universitária como a sua primeira experiência profissional.
Além desse perfil de jovens professores que ingressaram na Universidade com pouca experiência docente, observamos nessa mesma época que os dados da Pesquisa de Desenvolvimento de Disciplinas da Graduação, ação institucional da Prograd, apontavam para algumas críticas às metodologias utilizadas pelos professores e às estratégias de avaliação da aprendizagem dos alunos. Além disso, o setor recebia processos de avaliação de estágio probatório de docentes com demandas de aperfeiçoamento de suas práticas pedagógicas. Assim, foi a partir deste cenário que, em 2013, a Prograd criou o Programa Sala Aberta como uma resposta a essas demandas pelo aperfeiçoamento das práticas pedagógicas e pela institucionalização de um espaço para trocas e reflexões entre pares.
Quais foram os desafios enfrentados para a implementação do programa e de outros que surgiram com ele já estabelecido?
O Programa Sala Aberta foi criado em 2013, com aprovação no Cuni em 2015. O tempo entre a criação e regulamentação do Programa se deve ao diálogo estabelecido com as instâncias superiores. O desafio atual diz respeito aos recursos financeiros, e não se restringe às demandas relacionadas à formação, mas envolve todos os contingenciamentos que as universidades públicas federais vêm enfrentando nos últimos anos. Outro importante desafio está relacionado à adesão ao Programa Sala Aberta — como não há uma obrigatoriedade em participar das formações, com exceção dos professores em estágio probatório, muitos docentes, que não tiverem formação pedagógica, não participam das ações. Por outro lado, temos um número significativo de professores, iniciantes e veteranos, que buscam o Sala Aberta como espaço para refletir sobre suas práticas, trocar experiências com os pares e buscar novos conhecimentos para atuar frente aos novos desafios da docência.
O Sala Aberta completa 10 anos em 2023. Qual é o balanço que se tem do trabalho realizado pelo programa até hoje? Os objetivos iniciais foram alcançados?
O Programa Sala Aberta foi criado com a intenção de institucionalizar um espaço para reflexão sobre a prática pedagógica, dando foco ao protagonismo dos docentes. Acreditamos que esse objetivo tem sido plenamente alcançado, pois hoje temos um programa já consolidado na UFOP que se preocupa com o desenvolvimento profissional dos professores. Durante esses 10 anos do Programa, realizamos mais de 80 ações formativas entre palestras, mesas de debate, minicursos, oficinas, rodas de conversa, além do Sala Aberta Virtual. A procura pelas ações formativas é constante, não só por parte dos professores em estágio probatório, mas também por professores mais experientes que entendem o Sala Aberta como uma possibilidade de aperfeiçoamento da sua prática pedagógica.
Você sente que há um interesse genuíno por parte dos docentes na busca por um aperfeiçoamento da prática docente? Se não fosse pelo Sala Aberta, acredita que eles buscariam formas alternativas de aperfeiçoar seus métodos de ensino?
É difícil generalizar, mas há sim muitos professores preocupados com sua formação pedagógica, especialmente aqueles que percebem a lacuna existente na sua formação inicial em relação à prática docente. Diante dos atuais desafios que enfrentamos na Universidade em relação ao processo de ensino e aprendizagem, alguns professores procuram apoio, se preocupam em conhecer as dificuldades dos alunos, buscam novas formas de ensinar.
Por exemplo, vivenciamos uma pandemia, que modificou completamente as maneiras de ensinar e aprender. Foi um momento de extremo desafio para a prática pedagógica dos professores, o que estimulou a procura por uma formação para lidar com esse momento novo da história da educação. Durante esse período da pandemia, houve uma procura muito grande dos professores por estratégias didáticas com o uso das tecnologias de informação e comunicação.
Existem também algumas iniciativas isoladas de departamentos e colegiados de curso, que promovem grupos de estudo sobre aspectos ligados à docência para reflexão entre os pares. Então, posso dizer que há uma busca pelo aperfeiçoamento de práticas pedagógicas para além do Sala Aberta. Penso que o Sala Aberta veio para formalizar esse espaço de reflexão, de reunir professores com as mesmas angústias e dúvidas para um diálogo e compreensão de seu papel ético, político e social na Universidade.
É possível elencar os temas mais populares entre todas as atividades promovidas pelo Sala Aberta até hoje?
Desde sua criação já foram realizadas mais de 80 ações formativas, e sempre buscamos trabalhar com temas demandados pelos próprios professores. São assuntos que inquietam o cotidiano da prática docente. Os temas mais presentes nos encontros formativos estão relacionados às metodologias de ensino, metodologias ativas, avaliação da aprendizagem, e relação professor–aluno.
Buscamos também parcerias com outros setores da UFOP para oferta dos encontros, dependendo do tema que for abordado. Nós já realizamos encontros em parceria com a equipe da Prace, Cain, setor de capacitação da Progep, DRI, Proex, Programa de Pós-Graduação em Educação, entre outros. Nossa intenção é sempre estar em diálogo com os demais setores da Instituição, garantindo o princípio do programa, que é construir uma "sala aberta".
Assim, é em meio a esses desafios cotidianos que vamos avançando, aprimorando e consolidando o Programa Sala Aberta na UFOP, possibilitando a transformação e ressignificação da prática pedagógica docente.
Quais são as perspectivas para o futuro do programa?
O evento comemorativo, a ser realizado em 4 de outubro, terá como foco exatamente a discussão sobre o futuro do programa. O tema será "Sala Aberta 10 anos: reflexões sobre o Desenvolvimento Profissional Docente na UFOP". Contaremos com a presença de ex-professores da UFOP que contribuíram para a construção desse espaço de formação docente na Instituição, além do vice-coordenador do Colégio de Pró-Reitores de Graduação das Instituições Federais de Ensino Superior (Cograd), que abordará o estado da discussão sobre a política de formação do docente universitário em nível nacional. Nosso objetivo com o evento comemorativo é celebrar esse marco de uma década do Sala Aberta, trazendo as memórias e as perspectivas para o futuro do programa, e consolidá-lo como uma política institucional que valoriza e se preocupa com a docência universitária.
Temos como perspectiva de futuro a continuidade das ações do Sala Aberta e a valorização da participação nessas ações como critério para progressão na carreira docente, além de pensar uma política institucional de formação docente na UFOP que valorize as atividades de ensino e o esforço dos professores na busca pela melhoria da sua formação.
Confira a reportagem especial sobre os 10 anos do Sala Aberta.