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Brasil chegando a 600 mil mortos na pandemia

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Depois de 17 meses de pandemia, o Brasil chega a duas marcas importantes: quase 60% da população está vacinada com a primeira dose da vacina contra a Covid-19, enquanto outros quase 600 mil não tiveram a mesma chance e faleceram em decorrência da Covid-19. Negacionismo, negligência e ataques à ciência e às instituições de saúde e educação estiveram no centro do caos proporcionado por agentes que estiveram e estão, durante toda a pandemia, a serviço do vírus. 
 
A história brasileira de estruturação de um serviço de saúde gratuito e de qualidade, apesar das recentes investidas contrárias, mantém o país em um patamar de alta adesão à vacinação. Isso pode, em breve, nos tornar um dos países com uma das melhores campanhas de vacinação do mundo. Consequentemente, junto das medidas de prevenção, como uso de máscaras e distanciamento social, poderemos vencer esse período sombrio e doloroso para a população brasileira.
 
O Em Discussão desta semana é com o professor Sérvio Pontes Ribeiro, do Departamento de Biodiversidade, Evolução e Meio Ambiente da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Nesta conversa, ele dá um panorama do percurso desde o começo da pandemia até as expectativas futuras em relação ao fim da Covid-19 no país e apresenta algumas lições desta pandemia, como ter "um sistema de saúde exemplar. Eu acho que se há algo que se aprende em um momento de virada neoliberal das políticas públicas, a gente entende que não dá para privatizar o ensino, a ciência e muito menos a saúde." 
 
Professor, como o senhor analisa a tragédia dos quase 600 mil mortos por Covid-19 no Brasil, o segundo maior número absoluto de mortes no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, com pouco mais de 600 mil? E quais medidas poderiam ter sido tomadas já no início?
 
A quantidade de mortes que tivemos no Brasil por Covid é uma declaração de incompetência. Mais que isso, é uma declaração de absoluta negligência criminosa para com a população brasileira. Nós fomos um dos grupos de pesquisadores a informar o Governo com antecedência a sequência de cidades que seriam afetadas pela Covid. Nessa comparação que você fez com os Estados Unidos, embora tenhamos uma população bem menor, quase cento e vinte milhões de pessoas a menos, temos a segunda maior malha aeroviária do planeta, depois deles, e essa interconectividade interna com o mundo nos põe em uma posição muito mais vulnerável. Alertamos o Governo que tínhamos mecanismos para fazer o controle, poderíamos ter desacelerado e muito essa pandemia se tivesse havido uma ação efetiva dos portos, aeroportos e estradas, em um primeiro momento, e, em seguida, se não tivéssemos tidos tanta resistência oficial quanto às medidas mais corretas, como o uso de máscara e o distanciamento social 
 
No início da pandemia, um grupo de pesquisadores, incluindo o senhor, publicou um estudo mostrando grande preocupação com a região do Amazonas e a tragédia que seria a chegada do coronavírus lá. A previsão desse estudo foi confirmada e inclusive antecipada. Quais elementos provocaram um agravamento da pandemia na região de Manaus?
 
Temos em Manaus duas situações complexas. Ela recebe pessoas de todo o mundo e as redistribui na região norte e parte do centro-oeste. Isso fez com que ela fosse rapidamente exposta, e isso é amplificado pela rede de transporte pelo rio, que é também bastante significativa para Manaus. A outra coisa é que a cidade se alinhou com uma atitude que certos setores do Governo estavam propagando, de não exercitar o distanciamento social, o fechamento do comércio e o uso de máscaras, o que em uma cidade extremamente quente já é naturalmente difícil. As medidas foram negligenciadas ao extremo pelas autoridades locais, por pressão dos setores mais ricos da cidade, e isso acontece em um lugar que tem uma grande faixa de pobreza. Essas pessoas estão ao longo do rio Negro, dos portos, em lugares com um nível de higiene muito precário, muito abaixo da média nacional. Essas regiões têm uma série de condições insalubres típicas, onde qualquer nova doença que entra causa um fenômeno epidêmico que é exacerbado por essas características. É uma cidade que possui uma série de problemas de má gestão pública e que foi totalmente negligenciada.
 
O senhor acredita que o negacionismo e a desinformação de parte das autoridades e da população brasileira durante a pandemia, em detrimento do conhecimento e da ciência, contribuíram muito para este cenário atual?
 
Há uma atitude de alinhamento de forças das pessoas já enriquecidas do país e a sua necessidade de não ter que compartilhar nenhum prejuízo com a sociedade como um todo. Então foi o grande empenho para preservar os negócios, as empresas e o comércio o que expôs a grande população assalariada, que é a parcela com a maior parte das mortes. A maioria dos casos mais graves e das mortes ocorre em bairros com menor renda, com menor nível educacional e que foram pouco apoiados, a não ser no primeiro ano, mas, mesmo assim, não foi o suficiente, e qualquer coisa, inclusive para manutenção de emprego, foi feita a partir da negação de que havia um perigo. Então se conseguia garantir emprego negando que havia perigo. E se você está negando que há um perigo para a pessoa trabalhar, como você vai impor a ela o uso de máscara e regras sanitárias mais rigorosas? Isso criou um grande contraditório na massa trabalhadora que não pôde parar ao longo da pandemia, e é nesse subgrupo populacional que houve grande parte das mortes e dos casos. 
 
O planeta vem passando por grandes mudanças climáticas, causando efeitos no ecossistema, como derretimento das geleiras e mudança no habitat dos animais. No início do mês foi divulgado o IPCC AR6 WGI, intitulado "Climate Change 2021: the Physical Science Basis", que alerta para as mudanças climáticas e os impactos em todos os ecossistemas da Terra. Tais mudanças podem trazer novas doenças, incluindo as arboviroses (área que o senhor estuda) e causar novas epidemias e pandemias?
 
Na  verdade, se você olhar a literatura especializada em zoonoses, em doenças emergentes, há um alerta crescente desde 2011, 2012, 2013, 2015, sobre a inevitabilidade de nos depararmos com uma nova pandemia. Ou seja, há seis anos sabíamos que íamos enfrentar uma pandemia, não sabíamos qual em particular, mas sabíamos que ela estava prestes a acontecer, fruto das grande modificações da paisagem, todas ocorrendo ao mesmo tempo, com grande movimentação de pessoas e uma apropriação de recursos, como o tráfico de animais, uma das atividades econômicas mais lucrativas do mundo, acima do tráfico de armas e drogas. Eu não tenho nenhuma dúvida de que, ainda na atual geração, teremos um outro lockdown e espero que façamos isso melhor do que fizemos agora, para lidar com outras doenças emergentes. Elas efetivamente vão acontecer de novo. Não vejo nenhuma possibilidade de que não aconteça. A questão é como estaremos preparados para a próxima. Porque vai acontecer.
 
Apesar do atraso na compra das vacinas contra a Covid-19, vemos uma boa adesão à campanha e, recentemente, uma aceleração nas aplicações com a chegada de mais doses. Como o forte Sistema de Saúde que o Brasil construiu ao longo dos anos favorece esta e outras campanhas de vacinação e também de combate a outras doenças que geram um número alto de óbitos e que podem ter sido evitadas?
 
O Brasil poderia estar dando uma grande lição ao mundo, mas o governo não contribuiu, comprou vacinas com atraso, além de criar conflitos políticos na distribuição. Mas a gente vê que, a despeito da chamada "tiazinha do zap", que representa aquele conjunto de pessoas que espalham e ficam ouvindo bobagem e ficam falando que não vão se vacinar, pois todos temos uma um parente desse jeito, na hora que chega a data deles, na hora que chega a idade, estão vacinados. As pessoas podem falar o que quiserem, mas a estatística não mente, o brasileiro vacina e tem se vacinado exemplarmente. Temos um sistema de saúde exemplar e eu acho que se há algo que se aprende em um momento de virada neoliberal das políticas públicas, a gente entende que não dá para privatizar o ensino, a ciência e muito menos a saúde. Esses são os três pilares que nos mantiveram menos afetados do que estamos. O setor de educação segurou firme e se manteve em distanciamento, com todos os prejuízos para as camadas mais pobres. A gente soube criar disciplina e com isso resolveu parte dos problemas e acesso ao ensino, embora faltasse investimento nas camadas menos privilegiadas da sociedade. Nas universidades públicas houve, e a gente viu isso na UFMG e UFOP, por exemplo. Ambas criaram bolsas de acesso digital, forneceram laptops, tablets e o que o aluno precisasse para ter acesso ao ensino. O serviço público de saúde é o grande herói desse processo! Não teria sido assim se não tivéssemos um Sistema Único de Saúde público e gratuito como temos, estruturado e competente como temos. Então, que isso sirva para fazer os políticos refletirem antes de considerarem privatizar completamente as coisas como se o Brasil tivesse uma dinâmica econômica que permitisse que o setor privado mantivesse os serviços fundamentais funcionando. 
 
Como o senhor enxerga a pandemia no Brasil daqui em diante? Ainda temos um baixo número de totalmente imunizados (cerca de 25% das pessoas com mais de 18 anos tomaram a segunda dose ou a vacina de dose única) e a chegada de novas variantes ameaça o trabalho realizado até aqui. Quais as suas expectativas no controle da pandemia no país e também no mundo?
 
Eu acho que ela será controlada. No Brasil mais rápido até que em outras partes do mundo, se a gente de fato chegar à vacinação de todos acima de quinze anos até o final do ano. Mas é preciso ser rigoroso com a manutenção das máscaras, até pelo menos o final do ano, com a distribuição e a constância no fornecimento de vacinas. Nisso eu acho que faremos melhor que em outros lugares. Já é claro, pela natureza da Covid, que ela infecta muito tempo antes de a pessoa adoecer e por isso prolonga-se mais na sociedade. As variantes são mais letais, como pode ser percebido, e ainda mais transmissíveis, esse é um caminho natural das pandemias, a seleção será sempre na direção da maior transmissibilidade e, gradualmente, da perda de letalidade. A gente ainda poderia ter pandemia por cinco anos se não houvesse vacina e medidas não farmacológicas de controle. Chegando a 90, 95% da população vacinada, teremos superado isso. Não podemos festejar e cometer o erro que outros países cometeram de relaxar completamente com cerca de 70% da população vacinada. Nós temos que ter acima de 90% de toda a população vacinada. Vamos superar essa pandemia por causa da nossa natureza, da nossa sociedade, do comprometimento da maioria das pessoas, a despeito de um grupo que deve ser ignorado. Nós vamos alcançar isso mais rápido que países que começaram melhor do que nós.
 
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade. 
 
Veja todas as entrevistas publicadas. 

 

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